Numa tentativa inédita de discutir a importância da dor e seu tratamento, a Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED) reuniu especialistas de várias áreas para apresentar diferentes visões sobre “O tratamento da dor e a automedicação”. Realizado no dia 1º/09, em São Paulo, o evento contou com a presença dos médicos Mauricio Costa (neurologista e presidente da entidade), Daniel Feldman (reumatologista), Décio Chinzon (gastroenterologista), Paulo Bertini (cardiologista) e Rogério Teixeira da Silva (ortopedista).
“A dor é uma sensação cognitiva, subjetiva e individual. Ninguém pode dizer o quanto dói a dor do outro. Não há como mensurar essa experiência, a não ser que a pessoa tenha uma memória de dores e possa comparar suas intensidades”, define o reumatologista Daniel Feldman, professor-adjunto da Disciplina de Reumatologia da Unifesp.
A sensação da dor altera o humor, o apetite e o sono do paciente, provoca queda no sistema imunológico, leva ao estresse físico e psicológico, e, em alguns casos, pode levar à depressão e ao suicídio. Pouca gente sabe, mas as dores musculoesqueléticas, como artrite, dor lombar e tendinite, têm maior impacto na qualidade de vida do que um acidente vascular cerebral ou doença renal crônica, por exemplo.
Pela importância da dor, a SBED tem trabalhado e incentivado os médicos a considerarem a dor como o quinto sinal vital, ao lado do pulso, pressão arterial, respiração e temperatura. “É uma ação simples, que pode ocasionar um impacto altamente positivo para os pacientes”, explica Dr. Mauricio Costa, presidente da SBED e professor titular de Neurologia Clínica e de Neurofisiologia da Universidade Federal do Ceará. Segundo ele, a dor atinge, no mundo, 40% dos indivíduos, sendo que 50% apresentam algum comprometimento de suas atividades. No Brasil, somente a dor crônica afeta 57 milhões de pessoas. Recentemente, a prevalência desse tipo de dor também foi relatada em dois estudos. Em Salvador (BA), afeta 41,4% da população e, na capital paulista, 28,7% das pessoas.
Em relação aos tratamentos, os anti-inflamatórios são importantes aliados no combate à dor, desde que usados de maneira racional. No mundo todo, são consumidos cerca de 40 bilhões de comprimidos dessa classe terapêutica. No Brasil, os anti-inflamatórios estão divididos em três categorias: a) medicamentos de venda livre, sem necessidade de receita; b) remédios de venda sob prescrição médica; c) e produtos de venda sob prescrição médica com retenção de receita. “Não existe atualmente uma isonomia na classe de anti-inflamatórios quanto à regulamentação da prescrição médica. Não faz sentido discriminá-los com receituário, pois a literatura médica mostra que todos os medicamentos da classe têm potencial de melhorar a inflamação e de caus ar efeitos colaterais, sejam problemas renais, gástricos ou cardíacos”, alerta Feldman.
De acordo com o Dr. Feldman, todos os anti-inflamatórios atuam de forma semelhante, inibindo a enzima ciclooxigenase, que se apresenta em duas formas: COX-1 e COX-2. Essa substância é responsável pela produção do hormônio prostaglandina, que protege a mucosa gastroduodenal, auxilia nas funções renais e transmite a dor. “Os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) tradicionais inibem as duas formas da enzima. Por isso ao melhorarem a dor deixam sem proteção o estômago e o duodeno. Com o intuito de melhorar esse quadro, foi desenvolvida uma moderna classe de anti-inflamatórios, denominada coxibes, que tem como característica inibir seletivamente a COX-2 e minimizar esse tipo de efeito colateral”, esclarece.
Em relação aos efeitos colaterais, Décio Chinzon, professor de pós-graduação da Disciplina de Gastroenterologia Clínica da USP, explicou que dentre as pessoas que tomam anti-inflamatórios não esteróides tradicionais, no Ocidente, aproximadamente 30 milhões por dia, 25% dos usuários crônicos irão desenvolver sintomas digestivos e de 2% a 4% terão complicações graves, como sangramento e perfuração. Os efeitos colaterais atingem vários órgãos do trato digestivo, como esôfago, intestino, fígado, sendo mais frequentes no estômago e no duodeno, podendo causar gastrite e úlcera.
Um estudo brasileiro, coordenado por Chinzon, apontou que 41,2% das pessoas que procuraram o pronto-atendimento com azia, dor de estômago, náuseas, vômitos ou sangramento intestinal haviam tomado anti-inflamatórios não esteroides tradicionais.
Segundo Paulo Bertini, pesquisador da Unidade Clínica de Aterosclerose do InCor, os efeitos cardiovasculares indesejáveis ocorrem com praticamente todas as drogas. “Não podemos deixar de tratar a dor que acomete com frequência, por exemplo, as pessoas mais idosas de forma crônica. O importante é individualizar o tratamento de cada paciente, investigando possíveis doenças associadas, como diabetes e hipertensão, e tratando os eventuais fatores de risco. É preciso usar os medicamentos de forma racional, com a menor dose possível pelo menor tempo, sempre com acompanhamento médico.”
A automedicação, muito comum no Brasil, traz riscos à saúde e pode aumentar a possibilidade de surgirem efeitos colaterais indesejáveis. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox) da Fiocruz, no Brasil os medicamentos são o principal agente de intoxicação humana, com mais de 34 mil ocorrências por ano, entre elas 966 são causadas por automedicação. O uso indiscriminado pode, por exemplo, anular a eficácia ou potencializar os efeitos adversos dos medicamentos, além de mascarar sintomas ou agravar doenças. “A automedicação leva à cronificação da dor. Isso significa que faz a dor aguda não tratada se tornar crônica. Leva à cronificação de lesões, como tendinites, piorando os resultados no tratamento, tanto clínico quanto cir úrgico, bem como favorece os efeitos adversos gastrointestinais, cardíacos e renais”, afirma o Dr. Rogério Teixeira da Silva, presidente do Comitê de Traumatologia Desportiva da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT).