A mais famosa Reforma da história, ocorrida no século XVI, levou ao surgimento do Protestantismo e das igrejas Luterana, Calvinista e Anglicana. Consolidou-se a partir da ação de homens que, movidos por ideais e interesses, uniram-se em torno de propostas que já eram discutidas e divulgadas na Europa há pelo menos 200 anos. A insatisfação era com o Catolicismo – em especial com a incoerência percebida quanto ao discurso e prática. E por que inicio este artigo sobre o novo Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, prova adotada pelo Ministério da Educação (MEC) em pleno século XXI, falando sobre o Protestantismo de 500 anos atrás? Porque há semelhanças entre os acontecimentos de outrora e os de hoje. Para uma melhor compreensão cabe, porém, examinar as diretrizes básicas do MEC quanto ao novo Enem.
O Ministério da Educação apresentou uma proposta de reformulação do Exame Nacional do Ensino Médio e sua utilização como forma de seleção unificada nos processos seletivos das universidades públicas federais. A proposta tem como principais objetivos democratizar as oportunidades de acesso às vagas federais de ensino superior, possibilitar a mobilidade acadêmica e induzir a reestruturação dos currículos do ensino médio. As universidades possuem autonomia e poderão optar entre quatro possibilidades de utilização do novo exame como processo seletivo.
O primeiro aspecto a destacar refere-se, é claro, à ideia de Reforma, apresentada no documento do MEC através da palavra Reformulação – modificar ou construir novamente algo com diferente formato ou fórmula. Tanto na Idade Moderna, quando da ebulição do Protestantismo, quanto no que tange à educação brasileira no 3º Milênio, existem estruturas anteriores em vigência, em plena execução, que demandam – a partir de análise crítica, proposição construtiva, exame de alternativas, estudo de práticas e ações bem-sucedidas, coragem política para agir e capacidade de investimento – alterações a serem implementadas de imediato.
E não nos referimos aqui somente à aplicação de mudanças superficiais, que não signifiquem modificações concretas que representem “virar a mesa” e modificar a cultura vigente. Reformas ou Reformulações demandam a ideia de que paredes serão derrubadas, novos cômodos serão criados e de que o que foi concebido originalmente será reestilizado. Apesar disso, essas ações preveem também que a estrutura de apoio das edificações ou instituições em reforma será mantida. Em ambos os casos, não se constituem revoluções a partir de reformas ou reformulações, pois as bases do sistema são preservadas, mantidas intactas.
Outro ponto de aproximação não está explicitado no documento contido no portal do MEC, mas é igualmente relevante, pois se refere à criação de contexto favorável às mudanças colocadas em discussão e execução. A Reforma Protestante, por exemplo, só consolidou-se no século XVI e não antes disto porque foi neste período que surgiram elementos sociais, culturais e econômicos que a patrocinaram.
No Brasil de hoje também há uma conversão de fatores internos e externos que nos conduz a alterações em variados segmentos, entre os quais a Educação. A globalização e a crise são significativos vetores econômicos que indicam os caminhos e alternativas de futuro que se revelam a todos os países, inclusive ao Brasil. E não há perspectivas favoráveis no horizonte para aqueles que não investirem fortemente em suas escolas – da educação infantil a universidade. Este indicativo externo influencia as políticas internas – das discussões no Congresso às conversas de botequim. Estudar significa empregabilidade, produtividade, capacidade de gerar recursos, provimento de divisas, possibilidade de novos investimentos.
Os governos (federal, estaduais e municipais) aparentemente já entenderam a mensagem. A sociedade civil também está atenta. Os órgãos de comunicação acenderam a luz vermelha e já tornaram a educação pauta de suas reportagens e editoriais. As empresas privadas estão preocupadas com a qualidade da educação no país, pois temem que no futuro possam sofrer com um verdadeiro apagão da mão-de-obra (escassez de profissionais qualificados para realizar os trabalhos disponíveis e necessários à evolução de seus negócios). Há o risco de até mesmo investidores externos migrarem as aplicações nos setores produtivos que aqui fariam para países em que a educação seja de alto padrão.
Diante dessas perspectivas, com a faca no pescoço, creio que todos sabem que qualquer perda de tempo quanto às necessárias e prementes reformas educacionais significará penúria, desemprego, mais gente passando necessidade, menor arrecadação para os governos, menos divisas para as empresas.Podemos ainda destacar que as mudanças no Enem, ao definirem como objetivos a democratização do acesso ao ensino universitário, a mobilidade acadêmica e a reestruturação do Ensino Médio no país, também por isso se aproximam da Reforma Protestante, ao menos em sua essência.
E, certamente, entre os nobres propósitos explicitados quanto ao Enem, todos valiosíssimos enquanto ideias propostas, temos que assinalar como o mais importante a reestruturação do Ensino Médio, transformado durante tantos anos apenas numa ponte para se chegar à universidade. Até agora, o que vemos (ainda) é uma etapa decisiva da formação educacional – durante a qual se realizam trabalhos com adolescentes em ebulição e efervescência hormonal, física, emocional e cultural – sendo utilizada apenas como repositório de informações e dados. Seria como se passássemos os três anos no Ensino Médio a ensinar a esses alunos as senhas necessárias para que eles, ao final da travessia, possam utilizar-se delas no momento de um “pedágio” para entrar na universidade, sem que depois tenham que se preocupar com tais saberes porque eles teriam se tornado desnecessários, supérfluos e pouco significativos para suas experiências posteriores.
Neste sentido, outra reforma anunciada pelo MEC, através do Conselho de Educação, na estrutura do Ensino Médio – com a proposição de quatro eixos de trabalho ao redor do qual funcionarão os currículos (Trabalho, Cultura, Ciência e Tecnologia) e a ampliação da carga horária para 3 mil horas -, constitui importante parte do esforço de consolidação de uma nova etapa de vida para este momento da formação de nossos estudantes. Esforço este que somente tem valor quando percebido, assim como as mudanças do ENEM, enquanto parte de um conglomerado de ações que, conjuntamente, irão reformular não apenas o Ensino Médio ou o acesso à universidade, mas a educação e, como consequência, a própria sociedade.
Somente assim nossos jovens deixarão de ingressar nas universidades sem os essenciais subsídios culturais, emocionais, humanitários, científicos e técnicos demandados pela sociedade para a constituição de um futuro melhor para todos e para o país. Aí sim poderíamos ter uma clara visão daquilo que surgiu com a efetivação de Reformas ou Reformulações na educação brasileira, com a escola que esperamos finalmente de pé, reconstruída e modernizada.
* João Luís de Almeida Machado é Editor do Portal Planeta Educação; Doutor em Educação pela PUC-SP; Autor do livro “Na Sala de Aula com a Sétima Arte – Aprendendo com o Cinema” (Editora Intersubjetiva)