Agência FAPESP – Uma terapia celular desenvolvida por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) reduziu para menos da metade o tempo de regeneração do fígado de ratos submetidos a uma cirurgia que removeu 70% do órgão.
O objetivo imediato é testar a eficácia do método no tratamento de cirrose hepática induzida em animais. Futuramente, os cientistas pretendem avaliar a possibilidade de adaptar o tratamento para humanos.
As células-tronco usadas no estudo foram obtidas do broto hepático de embriões de ratos com 12 dias e meio de gestação, explicou Maria Angélica Miglino, professora da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP e coordenadora da pesquisa financiada pela FAPESP .
“Nos mamíferos, logo no início da gestação surge uma estrutura conhecida como intestino primitivo, a partir da qual se formam os brotos que darão origem a todos os órgãos da cavidade abdominal, como o fígado, o pâncreas, a bexiga e as alças intestinais”, disse Miglino.
As células-tronco do broto hepático têm tendência natural para se transformar em hepatócitos e, por conta disso, seriam teoricamente mais seguras e eficientes para uso no tratamento regenerativo do fígado quando comparadas a qualquer outro tipo de célula-tronco.
“Essas células têm potencial para formar um fígado. Nossos objetivos eram descobrir quando elas são formadas, qual seria o melhor momento para retirá-las do embrião, cultivá-las in vitro e usá-las para tratar cirrose induzida em ratos”, contou Miglino.
Durante o mestrado de Amanda Olivotti, realizado na FMVZ com orientação da professora Rose Eli Grassi Rici, os pesquisadores identificaram o momento ideal da gestação para obtenção das células-tronco, realizaram o cultivo, a caracterização morfológica e as análises histológicas.
“As células mostraram grande capacidade proliferativa, mantendo-se pluripotentes principalmente na metade do 12º dia após a fecundação. Não apresentaram marcadores de transformação neoplásica ou de erros genéticos”, contou Olivotti.
O passo seguinte, realizado já no doutorado de Olivotti, foi induzir o quadro de insuficiência hepática nos animais para testar o poder regenerativo da terapia.
“No primeiro grupo de roedores foi retirado 70% do fígado. Isso causa déficit metabólico e leva a uma insuficiência equivalente a dos casos de perda do órgão por trauma. Também simula a condição de crianças que nascem com o fígado atrofiado”, disse Durvanei Augusto Maria, pesquisador do Laboratório de Bioquímica e Biofísica do Instituto Butantan e coorientador do trabalho.
Em um segundo modelo animal, a cirrose foi induzida pela administração de medicamentos que causam fibrose nas células do fígado, levando a um quadro semelhante ao provocado pelo consumo excessivo de álcool ou pela inflamação crônica resultante de doenças como hepatite.
Vias de administração
Os pesquisadores testaram quatro diferentes vias de administração da terapia nos ratos hepatectomizados. As células-tronco foram marcadas com uma substância fluorescente para que seu deslocamento pelo corpo pudesse ser monitorado por meio de exames de ultrassom, raios X e tomografia de emissão de pósitrons (PET).
A primeira via avaliada foi a endovenosa, na qual as células eram introduzidas no organismo dos ratos por meio da veia peniana. Em um segundo grupo de roedores, as células foram injetadas no peritônio, membrana que reveste os órgãos da cavidade abdominal.
A terceira via testada foi a endotraqueal, que consistia em passar uma sonda no interior da traqueia e levar as células até o pulmão. “Alguns pacientes com cirrose desenvolvem síndrome respiratória e essa seria uma via alternativa para promover primeiro melhora no pulmão e, em segunda instância, no fígado”, explicou Augusto Maria.
Por último foi avaliada a via oroenteral, na qual uma sonda era introduzida pela cavidade oral, passava pela faringe, esôfago, estômago e aplicava as células-tronco no duodeno. Por essa via, segundo Olivotti, as células chegaram em maior número ao fígado e se mantiveram constantes no órgão por mais tempo.
“Obtivemos os melhores resultados pela via oroenteral por causa do ducto hepático, canal que une o duodeno e o fígado e serve normalmente para a passagem da bile. Essa via, até hoje, ninguém havia testado”, disse Miglino.
Segundo Augusto Maria, a intenção é avaliar uma quinta via de administração, mais direta, porém de maior risco: a artéria hepática. “Do ponto de vista cirúrgico, é mais fácil passar uma sonda do que mexer com uma artéria. Mas pretendemos avaliar também essa via, pois a ideia é desenvolver um modelo de tratamento que tenha reprodutibilidade em humanos”, disse.
Os animais foram acompanhados por 21 dias. Após esse período, as células-tronco se mostraram viáveis em todas as vias de administração, com maior ou menor eficácia em termos de regeneração do fígado.
“Um fígado leva em média 25 dias em modelos experimentais para se regenerar após a hepatectomia. Com a aplicação de uma única dose de células-tronco indiferenciadas do broto hepático nos animais submetidos à hepatectomia, a média foi reduzida para dez dias, mostrando ser um sistema altamente eficaz”, disse Olivotti.
Embora o fígado dos animais tenha voltado ao volume original, sua funcionalidade ainda não foi avaliada pelos pesquisadores. “Essas análises serão feitas até o fim do doutorado, mas os resultados in vitro indicam que o órgão manteve sua capacidade de metabolização”, disse Olivotti.
O modelo piloto de cirrose induzida por medicamentos precisou ser revisto, uma vez que a droga usada na primeira tentativa – a dimetilnitrosamina (DMN) – mostrou-se agressiva demais e poucos animais sobreviveram ao experimento.
“Iniciamos um novo protocolo de indução com tiocetamida (TAA), que é menos agressiva, mas o processo de desenvolvimento de cirrose leva mais tempo para acontecer”, disse Olivotti.
No momento, os pesquisadores também fazem um novo modelo de indução por hepatectomia no qual 90% do fígado é removido cirurgicamente. “Este protocolo tem de ser mais invasivo para podermos monitorar por mais tempo o processo de regeneração do fígado”, explicou.
Aplicação clínica
Embora a estratégia tenha se mostrado promissora, ainda há muitos obstáculos a serem vencidos até que a terapia possa ser testada em humanos. O primeiro deles é descobrir uma forma viável para obter as células do broto hepático.
“Ainda que a lei permitisse, não podemos usar embriões remanescentes de tratamentos de reprodução assistida, pois nessa fase de desenvolvimento o intestino primitivo ainda não está formado”, disse Miglino.
Embora seja tecnicamente possível usar células de fetos que sofreram aborto espontâneo ou provocado, haveria muitas questões éticas e legais envolvidas.
“Uma possibilidade seria formar um banco de células de primatas adaptadas a formar fígado humano. Mas precisamos investigar ainda se o transplante entre espécies diferentes seria viável”, disse Miglino.
Para Augusto Maria, ainda serão necessários estudos de longa duração com animais para que todos os riscos dessa terapia sejam avaliados. “É possível que a aplicação das células induza a formação de trombos e crie áreas infartadas. Pode ainda formar um tumor ou induzir doenças autoimunes”, ponderou.
Os estudos de longa duração, acrescentou, também são necessários para entender se as células-tronco estimulam o tecido agredido a se regenerar ou se são elas próprias que se proliferam dentro do órgão.
“Uma possível estratégia seria induzir cirrose em porcos para avaliar os efeitos da terapia celular. O fígado suíno é o que mais se assemelha ao humano”, disse Augusto Maria.
Os resultados preliminares estão agora sendo enviados para publicação. A pesquisa está vinculada ao Projeto Temático“O enigma vitelino”, também coordenado por Miglino.
Por Karina Toledo