Um medicamento indicado para uma pessoa nem sempre pode ser eficaz para outra que sofra da mesma doença. O que tem efeito positivo em um paciente pode desencadear reações indesejáveis em outro. A farmacogenética (ou farmacogenômica) pode identificar os fatores genéticos que explicam a variabilidade individual na resposta aos medicamentos. A maior parte da resposta aos medicamentos é poligênica. Para alguns medicamentos, porém, há uma situação monogênica. A variação genética pode ser em um gene.
“O que temos hoje em dia é uma discussão em torno de pares: um gene, um medicamento”, disse o farmacologista Guilherme Suarez-Kurtz, chefe do Programa de Farmacologia do Instituto Nacional do Câncer (Inca), à Agência FAPESP, durante o simpósio Medicina Translacional, realizado pela Academia Brasileira de Ciências em novembro.
“Os genes CYP representam o grupo mais importante da farmacogenética. As enzimas da família CYP metabolizam cerca de 80% dos medicamentos de uso clínico. Com isso, variações nos genes CYP podem alterar as doses a serem usadas”, disse.
Há ainda o gene VKORC, que afeta a resposta à varfarina (fármaco anticoagulante usado na prevenção de tromboses) e que apresenta variações genéticas frequentes.
“Um paciente, por apresentar essas características genéticas, tem um risco aumentado de sofrer efeitos colaterais. A genotipagem prévia vai mostrar que a variabilidade genética desse paciente pode aumentar o risco de efeitos tóxicos. É uma mudança de paradigma, uma nova e mais precisa variável”, disse Suarez-Kurtz à Agência FAPESP.
A genotipagem prévia pode, assim, possibilitar a aplicação de terapias individualizadas. “A forma de se usar essas informações no acompanhamento do paciente se dá sugerindo uma alteração de medicamento ou uma alteração de dose, ou dizer simplesmente que este paciente não pode fazer o tratamento, porque ele vai ter efeitos colaterais e irá interromper a terapia”, explicou.
Segundo o pesquisador, o abacavir, um dos antirretrovirais usados no tratamento da Aids, apresenta problemas de reações de hipersensibilidade associadas ao fator genético.
“É um remédio de primeira linha no tratamento da Aids, mas não é o único. Quando se diagnostica um paciente por infecção pela Aids, pode-se fazer genotipagem e se prescrever uma terapia alternativa”, avaliou Suarez-Kurtz, que também é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Muitas das variações genéticas têm um componente associado à ancestralidade individual, aponta o pesquisador.
“Por exemplo, um polimorfismo genético associado à ocorrência da síndrome de Stevens-Johnson (doença que provoca lesões cutâneas) em pacientes tratados com carbamazepina (medicamento anticonvulsivante utilizado no tratamento da epilepsia) é comum nas populações asiáticas, e raro nas populações africanas e europeias, principais ancestrais dos brasileiros. Assim, o risco desta síndrome nos brasileiros é mínimo”, disse Suarez-Kurtz.
Adoção clínica lenta
Estudo feito por pesquisadores da Rede Nacional de Farmacogenética (Refargen), iniciado em 2010 envolvendo 1.300 amostras, genotipou um número grande de polimorfismos farmacogenéticos reconhecidamente importantes.
Paralelamente, todos os indivíduos foram tipados com marcadores de ancestralidade para saber o quanto cada um deles tinha de ancestralidade africana, europeia ou, em menor escala, ameríndia.
“Quantificar a ancestralidade indígena é difícil por dois motivos: primeiro porque é difícil coletar informações dos ameríndios, uma vez que o sistema de proteção aos povos indígenas não permite estudar a genética dos índios, e segundo porque a contribuição média da ancestralidade ameríndia na população brasileira é de menos que 10%”, disse Suarez-Kurtz, coordenador da Refargen.
Entretanto, segundo o cientista, é impossível correlacionar a aparência física de brasileiros com a sua ancestralidade genética, ou seja, um indivíduo categorizado como “pardo” pelo IBGE pode não ter uma ancestralidade dominantemente africana.
Apesar dos avanços no campo, a adoção clínica da farmacogenética é um processo lento. “Os médicos norte-americanos consideram que existem cerca de 20 pares de medicamentos e genes que têm componentes farmacogenéticos importantes, incluindo a varfarina (anticoagulante) e a codeína (analgésico mais usado no mundo). Mas quantos desses médicos modificam as prescrições para atender à farmacogenética é outra história”, disse Suarez-Kurtz.
O fator genético não explica toda a variabilidade na resposta aos medicamentos. “A resposta aos medicamentos é um fenótipo complexo, um processo que envolve vários fatores. Fatores demográficos (como peso, idade, sexo) e clínicos, função renal, função hepática, hábitos alimentares, tabagismo, alcoolismo, enfim, são inúmeros os fatores que podem afetar a resposta aos medicamentos. As variáveis genéticas são um desses fatores. Então, para alguns medicamentos o fator genético é determinante, enquanto para outros o importante a se levar em conta é a idade, e para outros o peso”, concluiu o cientista.
Por Washington Castilhos
Agência FAPESP