Por Karina Toledo Agência FAPESP – O efeito da maconha, da cocaína e do crack no cérebro e o dano causado por essas drogas em funções cognitivas como memória, atenção, capacidade de planejamento e de tomada de decisões foram os temas de uma palestra apresentada pelo neuropsicólogo Paulo Jannuzzi Cunha, do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), no World Congress on Brain, Behavior and Emotions.
Durante o evento, realizado em São Paulo no fim de junho, Cunha apresentou dados de pesquisas recentes que mostram como a reabilitação cognitiva – feita por meio de estímulos como o jogo de xadrez – pode ajudar a recuperar parte das habilidades perdidas pelo consumo de drogas e ser fundamental para evitar a recaída de dependentes químicos em tratamento.
Leia a seguir trechos da entrevista concedida por Cunha à Agência FAPESP
Agência FAPESP – De que forma a maconha, a cocaína e o crack afetam o cérebro?
Paulo Jannuzzi Cunha – Cada droga tem seu mecanismo de ação particular, mas todas atingem de alguma forma o sistema de recompensa cerebral, que envolve o córtex pré-frontal, a área tegmentar ventral, onde há um conjunto de neurônios responsáveis pela liberação do neurotransmissor dopamina, e o núcleo accumbens. Quando sentimos prazer – seja por um estímulo físico, como comida, seja por um estímulo emocional –, ocorre a liberação de dopamina na sinapse, que é o espaço de conexão entre um neurônio e outro. Mas não ficamos alegres o tempo todo e, para retornar à situação de equilíbrio, essa dopamina precisa ser recapturada pelo neurônio que a liberou inicialmente. As drogas impedem esse processo de recaptura e fazem com que um excesso de dopamina permaneça na fenda sináptica, estimulando a comunicação entre os neurônios do sistema de recompensa, intensificando e prolongando a sensação de prazer.
Agência FAPESP – De que maneira isso pode ser prejudicial?
Cunha – Como as drogas estimulam muito o sistema de recompensa, mas de maneira artificial, o cérebro começa a ficar preguiçoso para produzir e liberar dopamina. Na medida em que o uso da droga vai se tornando crônico, a pessoa literalmente começa a perder os prazeres da vida e a sensação de bem-estar vai ficando cada vez mais restrita ao uso da droga.
Agência FAPESP – Mas como isso afeta as funções cognitivas?
Cunha – Tudo o que fazemos precisa envolver um certo grau de prazer e bem-estar; caso contrário, não conseguimos manter a atenção por muito tempo na atividade. Então o sistema de recompensa está de alguma forma relacionado com funções executivas, memória, atenção, planejamento e tomada de decisões. Além disso, no uso agudo da cocaína e do crack, ocorre uma vasoconstrição e aumento da pressão arterial. Isso aumenta o risco de um acidente vascular cerebral e de entupimentos de pequenos vasos sanguíneos (isquemias). O uso crônico dessas drogas faz com que várias regiões do cérebro fiquem mal irrigadas, o que também pode afetar o processamento cognitivo. Os danos são ainda maiores quando a cocaína é associada ao consumo de álcool, pois a mistura das duas drogas causa a formação no fígado de um metabólito chamado cocaetileno, que intoxica os neurônios e pode causar danos ao coração. O crack, por ser absorvido mais rapidamente, causa os mesmos efeitos da cocaína e de forma ainda mais intensa. Já a maconha não causa a vasoconstrição, mas há estudos que mostram outras alterações vasculares, aumento no risco de derrame e a diminuição de certas regiões do cérebro como a amígdala e o hipocampo, que são ricas em receptores para o tetrahidrocanabinol (THC). Isso pode afetar diretamente a capacidade de memorização e a regulação de emoções como medo e agressividade.
Agência FAPESP – É por esse motivo que a maconha é considerada um fator de risco para o desenvolvimento de transtornos psicóticos?
Cunha – A maconha aumenta o risco de desenvolver sintomas psicóticos, mas os mecanismos relacionados a esse fato ainda estão sendo estudados. A suscetibilidade parece estar ligada tanto a características genéticas como ao histórico de vida do usuário de maconha, a forma como ocorreu seu desenvolvimento neuropsicológico e seu estado psicológico no momento em que faz uso da droga. Há estudos que indicam que portadores de um determinado polimorfismo no gene que codifica a enzima catecol-O-metiltransferase (COMT) apresentam risco maior de desenvolver sintomas psicóticos se consumirem maconha. Um estudo do nosso grupo reforça a hipótese de que o cérebro de portadores de transtornos psicóticos – entre eles esquizofrenia e transtorno bipolar – que usam maconha é diferente do cérebro de portadores de psicoses sem história de uso de maconha.
Agência FAPESP – Como foi feito esse estudo?
Cunha – Os dados foram coletados durante o doutorado da Maristela Schaufelberger, na FMUSP, hoje docente na USP de Ribeirão Preto, e parte deles foi analisada durante meu pós-doutorado, que conta comapoio da FAPESP. Os resultados foram divulgados na edição de julho da revista Schizophrenia Research. Nós comparamos, por meio de exames de neuroimagem, o volume de certas áreas cerebrais de 80 voluntários sadios e não usuários de drogas, com 78 portadores de transtornos psicóticos não usuários de droga e com 28 portadores de transtornos psicóticos com histórico de uso de maconha. Também comparamos o desempenho de cada grupo em testes que mediam fluência verbal, memória operacional e a amplitude da atenção.
Agência FAPESP – Quais foram os resultados?
Cunha – Era de se esperar que os psicóticos usuários de maconha se saíssem pior nas duas avaliações, mas curiosamente eles tiveram resultados mais parecidos com os do grupo controle. Os psicóticos não usuários da droga apresentaram volume cerebral menor, principalmente no córtex pré-frontal – ligado às funções executivas – e nas áreas hipocampais – ligadas à memória. Outros estudos recentes também estão apontando essa relação.
Agência FAPESP – Haveria algum efeito benéfico da maconha?
Cunha – Não parece ser o caso. Do ponto de vista dos efeitos cerebrais, a maconha fumada está cada vez mais potente e mais rica em THC, que é o princípio ativo da droga e que está associado fortemente com problemas cognitivos e sintomas psicóticos. Por outro lado, há autores que defendem a hipótese de que o canabidiol (CBD), outra substância presente na maconha, poderia ter algum efeito neuroprotetor. Mas nossos dados não permitem afirmar isso, até porque não temos informações sobre a concentração de CBD e THC na maconha que os pacientes fumaram. Além disso, quem fuma maconha não absorve apenas canabidiol, mas também altas doses de THC, que conhecidamente causa danos cerebrais. Nossa hipótese é de que as pessoas que desenvolvem algum tipo de transtorno psicótico mesmo sem usar nenhum tipo de droga já apresentam algum prejuízo anterior no neurodesenvolvimento, talvez desde a infância, que faz com que o quadro inicial seja mais severo e as anormalidades cerebrais também. Já o paciente psicótico com história de uso de uso de maconha teria inicialmente um perfil neuropsicológico mais preservado, mas com a desestruturação funcional decorrente da psicose, em sua fase inicial. Mas, à medida que a doença avança, o quadro se torna igualmente grave nos dois grupos, pior ainda se o uso de maconha persistir. Os usuários de maconha não apresentam uma psicose mais leve que os demais.
Agência FAPESP – Por que certas pessoas são mais suscetíveis aos prejuízos causados pelas drogas e outras mais resistentes?
Cunha – Há fatores genéticos e ambientais. Todos os estímulos que recebemos ao longo da vida, a cultura adquirida, o aprendizado de línguas e de novas habilidades, fazem com que o cérebro forme um maior número de sinapses e isso gera uma reserva cognitiva. Quanto maior for essa reserva, maior é a resistência ao déficit causado pelas drogas ou por doenças como Alzheimer nas funções executivas e na memória. Agora estamos estudando como a reabilitação cognitiva, que é uma espécie de musculação cerebral, pode ajudar a compensar o déficit funcional causado pelas drogas. Já temos dados que indicam que, quanto maior o prejuízo às funções executivas, maior o risco de um dependente em tratamento voltar a usar a droga.
Agência FAPESP – Como foi feito esse estudo?
Cunha – Participaram 32 pacientes com diagnóstico de dependência de cocaína ou de crack, entre 18 e 45 anos, internados na Enfermaria do Comportamento Impulsivo do HC-FMUSP. Após a semana de desintoxicação, quando o teste toxicológico deixou de detectar os metabólitos da droga na urina dos pacientes, eles foram submetidos a diversos testes de avaliação das funções executivas, como atenção sustentada (manter o foco por período prolongado), atenção alternada (observar dois estímulos sequenciais, como números e letras, ao mesmo tempo), capacidade de abstração, flexibilidade cognitiva (adaptar-se a novos padrões de raciocínio), planejamento e tomada de decisões pensando no futuro. Após o período de internação de aproximadamente cinco semanas, o seguimento foi feito por telefone durante um mês. Os pacientes que recaíram durante esse período de seguimento foram os que apresentaram no início do tratamento o pior desempenho nos testes de avaliação das funções executivas. Dessa forma, os déficits cognitivos podem ser interpretados como indicadores da probabilidade de recaída dos dependentes. A pesquisa foi desenvolvida durante o mestrado da neuropsicóloga Priscila Dib Gonçalves, que contou comapoio da FAPESP e foi orientada por Arthur Guerra de Andrade. Agora, durante o doutorado, ela está avaliando o impacto da reabilitação cognitiva no tratamento, a partir de um novo modelo de reabilitação cognitiva que nós criamos, chamado “Xadrez Motivacional”.
Agência FAPESP – Como funciona esse modelo?
Cunha – Usamos o jogo de xadrez aliado a técnicas de uma abordagem científica conhecida como Entrevista Motivacional, em que a terapeuta ajuda o dependente a entender as motivações que o levam a usar drogas e o auxilia a traçar metas para o futuro e estratégias para manter-se longe das drogas. Por meio de exames de ressonância magnética, estamos também investigando as regiões cerebrais ativadas durante a reabilitação, com apoio de Geraldo Busatto, que coordena o Laboratório de Neuroimagem da USP, com auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Sabemos que os dependentes químicos têm danos generalizados em várias regiões, mas pensamos que aqueles da região pré-frontal – que coordena as funções executivas – são os mais relacionados com as recaídas e a dificuldade de aderir ao tratamento. Por isso, focamos na reabilitação dessas áreas pré-frontais. Nosso objetivo é investigar se o treinamento de fato faz com que essas regiões cerebrais funcionem melhor.
Agência FAPESP – Como a reabilitação cognitiva atua sobre o cérebro?
Cunha – Trazer de volta os neurônios que já morreram é impossível, mas podemos estimular as áreas que continuam preservadas e deixá-las mais fortes para compensar o déficit cognitivo. É a chamada neuroplasticidade. Os dados preliminares já evidenciam melhoria cognitiva nesses pacientes, mas precisamos ir além e entender de que forma isso representaria melhoria na vida diária e na recuperação deles a longo prazo.