Por Karina Toledo Agência FAPESP – Em um estudo publicado recentemente na revista Experimental Physiology, pesquisadores brasileiros confirmaram a importância de um grupo específico de neurônios, situados em uma região encefálica conhecida como núcleo retrotrapezoide (RTN), na detecção de alterações nos níveis de dióxido de carbono (CO2) e na modulação da atividade de outros grupos neuronais que controlam a atividade respiratória.
A pesquisa contou com a participação de cientistas do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP) e da Faculdade de Odontologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara.
“O CO2 é importante para regular o equilíbrio ácido-básico do sangue. Quando a concentração desse gás fica acima do normal, o sangue tende a ficar mais ácido, o que promove a ativação de sensores especializados chamados quimiorreceptores”, disse Eduardo Colombari, professor da Faculdade de Odontologia da Unesp em Araraquara e coordenador do Projeto Temático “Mecanismos neurais envolvidos na quimiorrecepção”.
“Alguns desses quimiorreceptores estão localizados no sistema nervoso central, mais especificamente na superfície ventrolateral do bulbo (região do encéfalo responsável pelo controle neurovegetativo, que faz a interface entre a medula espinal e o mesencéfalo), no RTN”, explicou.
Segundo Colombari, os neurônios dessa região expressam um marcador específico, o que facilita a sua identificação. Esse marcador consiste em um fator de transcrição chamado de Phox2b, envolvido na diferenciação celular de neurônios autonômicos e respiratórios.
“Esses neurônios comunicam-se com outros grupamentos neurais responsáveis pelo controle da atividade respiratória com o objetivo de manter os níveis de CO2 em faixas consideradas fisiológicas”, disse o pesquisador.
Trabalhos anteriores da literatura científica, contou Colombari, sugeriam que o controle da quimiorrecepção (detecção e modulação dos níveis de CO2) envolvia diversos grupamentos neuronais, como o núcleo do trato solitário, os núcleos da rafe (que secretam serotonina), regiões pontinas e hipotalâmicas.
No entanto, o trabalho do grupo demonstrou que as alterações respiratórias promovidas pelo aumento dos níveis de CO2 ficam prejudicadas quando ocorre a destruição seletiva dos neurônios do RTN que expressam o fator de transcrição Phox2b.
“Esses neurônios que expressam Phox2b têm em sua membrana receptores para um neurotransmissor chamado substância P. Esse neurotransmissor está envolvido em várias comunicações neurais que mantêm o funcionamento adequado de diversas funções fisiológicas”, disse Colombari.
Para induzir a lesão neuronal, os pesquisadores utilizaram uma toxina – conhecida como saporina – acoplada ao principal receptor da substância P. Ela foi injetada diretamente na região do RTN em animais de experimentação.
“Estudos anteriores já haviam mostrado que o processo de destruição de neurônios pela saporina demora entre 10 e 14 dias. E, de fato, nas medidas feitas nos primeiros dias após a injeção não foram observadas grandes diferenças entre o grupo controle e o grupo que teve a lesão neuronal na região do RTN. Mas, após o 14º dia, a resposta respiratória dos animais que receberam a saporina já estava bastante comprometida”, contou Colombari.
Os animais foram colocados em uma câmara onde era possível medir a quantidade de ar inspirado e expirado a cada ciclo respiratório. Em seguida, os cientistas introduziram nesse ambiente uma mistura gasosa com cerca de 7% de CO2, concentração bem mais alta que a do ar atmosférico (em torno de 0,03%), suficiente para causar um estado de hipercapnia (elevação dos níveis de CO2 no sangue arterial) e promover a ativação do quimiorreflexo.
Após dez minutos de exposição ao CO2, o grupo de animais que recebeu a toxina apresentou uma redução significante da ventilação em condições de ar ambiente, bem como durante a exposição a elevados valores de CO2.
Segundo Colombari, a resposta foi prejudicada principalmente pela redução no volume de ar corrente no grupo que recebeu saporina. “Esses animais praticamente perderam a capacidade de eliminar o excesso de CO2 e poderiam morrer intoxicados se a condição experimental fosse mantida por mais tempo”, disse.
De acordo com o pesquisador, o trabalho elucida como uma pequena região do encéfalo contém neurônios com uma assinatura bioquímica clássica (Phox2b) e que estão envolvidos na detecção e manutenção dos níveis adequados de CO2, permitindo que a homeostase seja mantida em equilíbrio.
Leptina e controle da ventilação
Outra linha de investigação dentro do Projeto Temático mostrou que as respostas desencadeadas pelo quimiorreflexo central podem ser prejudicadas pela deficiência de leptina – hormônio produzido pelo tecido adiposo e envolvido na sensação de saciedade.
“Alguns casos de obesidade são causados por deficiência na produção de leptina. Em camundongos geneticamente modificados para não expressar leptina mostramos que a reposição desse hormônio melhora as respostas do quimiorreflexo central. Mas ainda estamos investigando de que forma a leptina está envolvida nesse controle”, contou Colombari.
Os resultados renderam artigos no European Journal of Physiology e na revista Acta Physiologica.
Segundo Colombari, o avanço no conhecimento dos mecanismos envolvidos na percepção dos níveis de CO2 no sistema nervoso central pode ajudar, no futuro, a prevenir casos de morte súbita em adultos e em crianças recém-nascidas.
“Há casos de crianças recém-nascidas em que os neurônios que expressam Phox2b na região do RTN, isto é, os neurônios que detectam variações de CO2, estão comprometidos, prejudicando o processo ventilatório durante o sono e vigília”, disse.
“Essa é uma síndrome extremamente rara chamada de Síndrome da Hipoventilação Congênita Central ou Síndrome de Ondina. Quando esses mecanismos estiverem mais bem esclarecidos, poderemos pensar em desenvolver testes para identificar pessoas que necessitariam de um melhor monitoramento dos níveis de CO2 para adaptação nas condições fisiopatológicas”, disse o pesquisador.