Por Karina Toledo Agência FAPESP – Além dos bem conhecidos problemas na mineralização óssea, a deficiência de vitamina D recentemente tem sido associada ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares e autoimunes, pressão alta e diversos tipos de câncer. Agora, um estudo do Laboratório de Investigação Médica (LIM12) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) revelou que a falta do nutriente pode também prejudicar o funcionamento adequado dos rins e comprometer a recuperação de lesões no órgão.
“Uma das principais causas de injúria renal aguda no ser humano é a lesão por evento isquêmico, que ocorre quando o fluxo sanguíneo para o rim é obstruído por um período e depois é restaurado. Durante o processo isquêmico, a falta de oxigênio leva à degeneração e morte celular. Nosso objetivo era descobrir como a falta de vitamina D influencia o processo regenerativo”, explicou o biólogo Rildo Aparecido Volpini, coordenador do projeto “”, apoiado pela FAPESP.
O experimento com animais indicou que a deficiência do nutriente diminui a função renal, modifica a expressão local de proteínas e aumenta a formação de fibrose após lesão induzida.
O grupo de Volpini desenvolveu em ratos dois modelos experimentais de isquemia e reperfusão (retorno do fluxo sanguíneo após sua privação por determinado tempo). No protocolo agudo, os animais com dois meses de idade – o equivalente a um jovem adulto humano – eram alimentados durante 30 dias com ração livre de vitamina D. No 28° dia os pesquisadores induziam uma lesão por isquemia e reperfusão.
“O fluxo sanguíneo para os rins era interrompido por 45 minutos, tempo suficiente para causar uma lesão significativa. Os animais eram avaliados após 48 horas e então submetidos à eutanásia para análise da expressão gênica e proteica no órgão”, disse o pesquisador.
No protocolo crônico, os ratos eram alimentados durante 90 dias com a ração livre de vitamina D. No 28° dia sofriam o insulto (lesão induzida) de isquemia e reperfusão e, 60 dias depois, eram avaliados e submetidos à eutanásia.
“Para verificar a quantidade de vitamina D presente no organismo dos animais, nós dosamos a 25-hidroxivitamina D (25OHD) plasmática, a forma circulante da vitamina D, rotineiramente utilizada para estimar os níveis deste hormônio no organismo”, explicou Volpini.
Enquanto o grupo controle apresentava entre 15 e 16 nanogramas (ng) por mililitro (ml) de sangue, os ratos do protocolo agudo alimentados com a dieta livre de vitamina D apresentavam em torno de 4 ng/ml no 30° dia de consumo. Os animais do protocolo crônico alimentados por 90 dias com a mesma dieta apresentavam níveis plasmáticos indetectáveis de vitamina D. “Isso mostra que, se houve alguma síntese de vitamina D pela pele, ela foi irrisória”, comentou Volpini.
Nos dois modelos experimentais os animais foram divididos em quatro grupos: o primeiro, considerado controle, recebeu ração normal e não sofreu o insulto de isquemia e reperfusão; o segundo apenas recebeu ração livre de vitamina D e não teve a lesão renal induzida; o terceiro recebeu ração normal e sofreu o insulto de isquemia e reperfusão; o quarto recebeu a ração livre de vitamina D e teve a lesão induzida.
Resultados
A análise da função renal realizada nos animais do protocolo agudo revelou que, enquanto o grupo controle apresentava uma taxa de filtração glomerular entre 0,8 a 1 ml por minuto por 100 gramas de peso, o grupo que somente recebeu a ração livre de vitamina D filtrava apenas entre 0,6 e 0,7 ml/min/100 g peso – uma queda de aproximadamente 20% na função renal.
O grupo de ratos que sofreu a isquemia e recebeu ração normal teve queda de 50% (cerca de 0,4 ml/min/100 g peso) e o grupo que teve lesão induzida e comeu ração livre de vitamina D teve queda de 70% na função renal (0,3 ml/min/100 g peso).
“Observamos que a falta de vitamina D isoladamente já prejudica a função renal. Não sabemos ao certo o motivo, mas provavelmente seja por causa de alterações no sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA, conjunto de peptídeos, enzimas e receptores envolvidos no controle da pressão arterial), com consequente repercussão no controle pressórico. Existem evidências na literatura mostrando que a deficiência de vitamina D contribui para uma inapropriada ativação do SRAA, funcionando como um mecanismo de progressão da doença renal crônica”, comentou Volpini.
O passo seguinte foi analisar os eletrólitos no plasma e urina dos animais, assim como verificar se havia a presença de proteínas na urina (proteinúria).
“A presença de proteínas na urina [proteinúria] é um indicativo de lesão renal. Significa que o filtro glomerular não está funcionando adequadamente ou que os túbulos renais não estão conseguindo reabsorver as proteínas filtradas. Normalmente, o processo de filtração e reabsorção não deve deixar escapar essas moléculas importantes para o organismo”, explicou Volpini.
Os testes mostraram que o grupo de ratos que somente foi alimentado com a ração livre de vitamina D apresentou um aumento de aproximadamente 60% na proteinúria quando comparado aos animais do grupo controle. Os animais que foram alimentados com a ração livre de vitamina D e sofreram o insulto de isquemia e reperfusão tiveram aumento de mais de 90% na excreção urinária de proteínas.
“Estudos têm demonstrado que níveis baixos de vitamina D podem desencadear proteinúria por fatores diretos e indiretos. Diretamente, baixos níveis de vitamina D induzem a perda de podócitos (células do epitélio renal que formam um importante componente da barreira de filtração glomerular) e o desenvolvimento de glomeruloesclerose, prejudicando a integridade da membrana de filtração glomerular, permitindo desta maneira a passagem de macromoléculas para o espaço urinário”, disse Volpini.
Outra possível explicação, de acordo com o pesquisador, seria o aparecimento da proteinúria de maneira indireta. Baixos níveis de vitamina D promovem alterações no SRAA, terminando por desencadear aumento da pressão arterial. Essa alteração hemodinâmica poderia contribuir para o aumento da excreção urinária de proteínas.
Outra alteração observada no estudo agudo, principalmente naqueles grupos de animais deficientes em vitamina D, foi a perda da habilidade renal em concentrar a urina para poupar água. A deficiência de vitamina D reduziu a expressão proteica de aquaporina 2, a molécula responsável pelo transporte de água nas porções finais do néfron.
“Nos animais que receberam a ração livre de vitamina D, constatamos uma redução de 20% a 30% da osmolalidade urinária em relação ao grupo controle. Nos outros dois grupos – apenas isquemia e deficiência mais isquemia – a queda na concentração foi de mais de 50%”, contou o pesquisador.
As análises de expressão proteica feitas após o sacrifício dos animais mostraram que, enquanto no grupo controle a expressão de aquaporina 2 estava em níveis fisiológicos (100%), os ratos que receberam a ração livre de vitamina D expressavam apenas 26%. Nos animais submetidos à isquemia, a expressão estava em torno de 50% e nos isquêmicos e deficientes em vitamina D, em 25%.
“Estudos anteriores já mostraram que a vitamina D influencia a expressão gênica nos ossos, no cérebro, no intestino, no fígado e nos rins. Nossos resultados mostram que ela tem impacto direto na expressão de aquaporina 2, na expressão das proteínas p21 [proteína inibitória do ciclo celular, participando do controle da proliferação celular] e klotho [relacionada ao envelhecimento celular]. De acordo com nossos dados, a expressão proteica do klotho está reduzida nos animais submetidos ao insulto isquêmico e a expressão proteica da p21 está elevada nesses mesmos animais, nos levando a associar esses dois parâmetros”, contou Volpini.
Enquanto no grupo controle e no grupo que recebeu a ração livre de vitamina D a expressão da p21 estava em 100% (níveis fisiológicos), no grupo que apenas sofreu a isquemia a expressão foi para 290%. O grupo que recebeu ração livre de vitamina D e teve lesão induzida expressou 182% da proteína p21.
“Estudos anteriores demonstraram que, no momento da lesão renal por isquemia e reperfusão, a célula necessita estar em repouso, ou seja, sem entrar em divisão celular, para poupar energia. O aumento da expressão de p21 nesse caso pode ser considerado protetor. A deficiência de vitamina D, por outro lado, atenuou a expressão de p21 quando comparada ao grupo de animais isquêmicos, prejudicando o mecanismo de proteção celular”, explicou Volpini.
Os resultados também mostram prejuízos na expressão de klotho, que participa do controle da senescência celular. O grupo que recebeu ração livre de vitamina D apresentou apenas 76% da expressão em comparação ao controle, que é de 100%. O grupo isquêmico expressou apenas 22% e o grupo deficiente e isquêmico, apenas 16%.
“Embora não tenhamos avaliado, é bem provável que em outros órgãos a expressão de klotho também esteja comprometida pela falta de vitamina D”, avaliou Volpini.
Impacto em longo prazo
Nos ratos do protocolo crônico, foi verificado aumento de aproximadamente 15% na pressão arterial nos grupos deficientes em vitamina D, isquêmicos e deficientes em vitamina D submetidos ao insulto de isquemia e reperfusão.
Esta alteração da pressão arterial, de acordo com o pesquisador, pode ser explicada por dois fatores: envelhecimento e aumento nas expressões de proteínas do sistema renina-angiotensina. “No protocolo crônico, também devemos considerar a variável envelhecimento, ou seja, animais dois meses mais velhos que aqueles do protocolo agudo. São ratos que já estão com idade equivalente a um humano de 30 ou 40 anos.”
De acordo com o pesquisador, a diferença mais interessante observada entre os grupos do protocolo crônico foi a maior formação de fibrose nos animais que receberam ração livre de vitamina D, confirmando que a falta do nutriente prejudicou a regeneração do tecido dos animais submetidos ao insulto de isquemia e reperfusão.
“Durante o processo de recuperação, nem todo o tecido reconstruído é funcional. Chamamos de fibrose aquele tecido que tem apenas a função de preenchimento e sustentação”, contou Volpini
Para fazer essa avaliação, os pesquisadores mediram o espaço intersticial existente entre os túbulos renais. Enquanto no grupo controle a área intersticial ficou entre 7% e 8%, no grupo deficiente em vitamina D esse índice aumentou para 17%. No grupo que apenas sofreu a isquemia, a área intersticial foi de aproximadamente 25% e, no grupo deficiente e isquêmico, de 35%. Além disso, os pesquisadores encontraram maior quantidade de células inflamatórias como macrófagos, monócitos e linfócitos no espaço intersticial dos grupos que receberam a ração livre de vitamina D.
O passo seguinte foi quantificar a expressão tecidual das proteínas colágeno IV e fibronectina – relacionadas à formação de fibrose. “Enquanto o colágeno IV era praticamente zero no controle, no grupo deficiente em vitamina D houve um aumento de 34% na expressão desse marcador. No grupo isquêmico a elevação foi de 82% e, no deficiente e isquêmico, de 103%”, contou Volpini.
Os dados de fibronectina foram semelhantes. Enquanto no grupo controle os valores foram próximos de zero, no grupo deficiente o aumento foi de 70%. No grupo isquêmico houve elevação de 75% e, no deficiente e isquêmico, em torno de 95%.
Os pesquisadores verificaram ainda a expressão do TGF-? (Transforming growth factor beta), considerada a principal citocina pró-fibrótica, e viram que os ratos deficientes em vitamina D tinham aumento de 46% em relação ao controle. No grupo isquêmico o aumento foi de 53% e, no grupo deficiente e isquêmico, de 150%
Segundo Volpini, os resultados da avaliação de proteinúria foram semelhantes aos do protocolo agudo. Já a avaliação de função renal no protocolo crônico não mostrou diferença entre o grupo controle e os que sofreram o insulto de isquemia e receberam ração livre de vitamina D.
“Houve uma queda da função renal em todos os grupos estudados, inclusive o controle, quando comparado aos resultados do estudo agudo. Essa redução da função renal é esperada, uma vez que novamente se deve considerar a diferença de idade entre os grupos estudados. Mas, apesar de não haver repercussão na taxa de filtração glomerular, foi verificado um comprometimento progressivo e crescente, de forma significativa, avaliado pela expansão da área intersticial do córtex renal. Essas alterações túbulo-intersticiais crônicas foram caracterizadas como presença de fibrose e infiltrado inflamatório do interstício, dilatação e atrofia tubular”, disse Volpini.
Segundo o pesquisador, no protocolo crônico o organismo dos animais teve tempo de se adaptar às condições experimentais aplicadas e recuperar a função renal, mantendo-a em níveis compatíveis à idade. Entretanto, frente às observações morfológicas encontradas, o grupo pretende estudar a deficiência de vitamina D em um prazo mais prolongado.
“Os resultados permitiram concluir que a lesão renal induzida pelo insulto de isquemia e reperfusão renal associado à deficiência de vitamina D é considerável e que essas alterações podem evoluir para modificações persistentes da estrutura renal com fibrose e acometimento dos túbulos-renais, apesar da recuperação da função renal”, afirmou Volpini.
Para o pesquisador, os resultados reforçam a importância de monitorar com mais cautela os níveis de vitamina D no organismo e de oferecer suplementação para portadores de lesões renais crônicas e agudas. “Mesmo depois que a lesão já está instalada, a manutenção dos níveis adequados da vitamina D pode impedir que o processo de degeneração do órgão se acelere”, afirmou.