José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – “O Brasil precisa reconhecer que é um país em rápido processo de envelhecimento e fazer disso uma prioridade, tanto na definição de políticas públicas quanto na alocação de recursos”: a afirmação é de Maria Lúcia Lebrão, professora titular sênior da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
Lebrão coordena o “Estudo Sabe – Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento”, pesquisa longitudinal de múltiplas coortes sobre as condições de vida e saúde dos idosos do município de São Paulo. Esse estudo multicêntrico teve início no ano 2000, quando, por iniciativa da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), foram pesquisadas pessoas de 60 anos ou mais de sete grandes cidades da América Latina e do Caribe, entre elas São Paulo. Com da FAPESP, o estudo foi reeditado em São Paulo em 2006, 2010 e está agora em sua quarta edição.
“Em 2000, visitamos quase 6 mil domicílios e entrevistamos 2.143 pessoas (coorte A). Em 2006, voltamos às casas das pessoas visitadas anteriormente e conseguimos entrevistar 1.115 (coorte A); além disso, entrevistamos um novo contingente de 60 a 64 anos (coorte B). Em 2010, voltamos às casas das pessoas visitadas em 2006, tanto da coorte A quanto da coorte B, e introduzimos mais um novo grupo de 60 a 64 anos (coorte C). Vamos seguir o mesmo procedimento nesta quarta rodada. O Sabe é, portanto, um estudo longitudinal, que vem acompanhando um mesmo contingente de idosos ao longo do tempo, e também um estudo de múltiplas coortes, pois, a cada reedição, agrega um novo contingente ao anterior”, explicou a pesquisadora à Agência FAPESP.
Esse duplo caráter possibilitou que o estudo mapeasse tanto as mudanças vividas pelos indivíduos ao longo de seu processo de envelhecimento quanto as transformações pelas quais vem passando a sociedade e que se refletem nas novas características das pessoas que alcançam a sexta década de vida.
“A coorte A é formada por idosos mais tradicionais. Nela predominam pessoas com baixa escolaridade (50% estudaram apenas três anos ou menos), muitas provenientes da zona rural (70% dedicaram-se a trabalhos predominantemente físicos) e dotadas de hábitos muitos diferentes dos atuais (para os quais fumar e beber eram considerados coisas normais e a atividade física se restringia àquela incorporada ao trabalho). Hoje, a situação é completamente diferente”, disse Lebrão à Agência FAPESP.
Segundo a pesquisadora, a nova geração de idosos está mais preocupada com a promoção da saúde. Tenta não fumar, tenta beber menos, tenta praticar exercícios físicos, tenta dirigir por mais tempo. “Acima de tudo, são pessoas com um nível de escolaridade mais alto”, afirmou.
A essas características positivas contrapõem-se os enormes desafios que o envelhecimento da população apresenta para a sociedade brasileira. O percentual de idosos no país cresceu de 4,1%, em 1940, para 10,8%, em 2010, e deverá chegar a 12,0%, em 2020.
“Nossa transição demográfica ocorreu em três grandes etapas. Do século XIX até 1940, tivemos altas taxas de natalidade e também altas taxas de mortalidade, que resultaram em uma população aproximadamente estável, com grande proporção de jovens. De meados da década de 1940 até o final da década de 1960, mantiveram-se altas as taxas de natalidade enquanto caiu a taxa de mortalidade, o que levou a um aumento populacional e a um aumento também do contingente jovem. A terceira tendência, iniciada ainda em meados dos anos 1960, combinou a redução da taxa de natalidade com a redução da taxa de mortalidade, provocando a rápida queda do crescimento populacional e o aumento percentual dos contingentes de adultos jovens e idosos”, informou Lebrão.
Taxa de fecundidade
A taxa de fecundidade brasileira caiu de 5,8 filhos por casal em 1970 para 1,8 filho por casal em 2010 – número que não é suficiente para a reposição populacional. “Mantida a tendência de queda, alcançaremos um pico populacional de 218 milhões de pessoas em 2035, após o que a população brasileira começará a diminuir”, prognosticou a pesquisadora. O Brasil acompanha assim a tendência mundial, puxada pelos países desenvolvidos, que fará com que a faixa da população do planeta com mais 65 anos supere em número a faixa da população com menos de 5 anos antes de 2020.
Em termos globais, esse envelhecimento da população levou a uma transição epidemiológica, com as doenças infecciosas, antes prevalentes, sendo suplantadas pelas doenças crônicas não transmissíveis. Porém o Brasil, assim como outros países da América Latina e Caribe, não teve uma transição epidemiológica tão linear quanto a observada nos países desenvolvidos. “Nossa transição epidemiológica caracteriza-se por um vaivém. Se já temos muitos idosos com doenças crônicas não transmissíveis, ainda temos também uma alta incidência de doenças infecciosas (dengue, febre amarela, malária etc.). Pensamos, por exemplo, que a febre amarela havia sido erradicada, e, de repente, constatamos o seu ressurgimento. Esse vaivém exige que os recursos do sistema de saúde sejam divididos para o enfrentamento de uma dupla carga de doenças”, pontuou Lebrão.
Outro aspecto, ainda mais importante em termos de impacto sobre o sistema de saúde, é que, enquanto a curva de mortalidade se desloca para idades cada vez maiores, a curva de morbidade se mantém praticamente inalterada. Ou seja, as pessoas passaram a viver mais, porém continuam a ficar doentes com a mesma idade em que ficavam antes. E o intervalo entre as duas linhas tende a aumentar cada vez mais, trazendo grande impacto sobre o sistema de saúde.
“Se a esperança de vida ao nascer passou de 52,6 anos, em 1970, para 73,4 anos, em 2010, as pessoas continuaram a ficar diabéticas ou cardíacas a partir da quinta década de vida. E isso já está gerando um enorme aumento da demanda dos serviços de saúde”, exemplificou a pesquisadora. “O que temos que fazer é promover saúde, para que as pessoas não fiquem doentes tão cedo.”
Curva da incapacidade
O intervalo cada vez maior entre a curva da mortalidade e a curva da morbidade faz aumentar também a curva da incapacidade. Cresce a sobrevida da pessoa doente, mas não são evitadas as intercorrências incapacitantes da doença, o que, além de comprometer a qualidade de vida, constitui outro gravíssimo problema econômico e social. “Os serviços públicos não estão de forma alguma capacitados para responder a essa nova realidade. A pessoa doente ou incapacitada passa a depender da família e há cada vez menos familiares para arcar com essa responsabilidade. A família extensa foi substituída pela família nuclear. Se, em 1970, para cada idoso tínhamos oito jovens, em 2020, teremos apenas dois”, enfatizou Lebrão.
No rol das enfermidades, segundo a pesquisadora, o grande fantasma é constituído pelas várias modalidades de demência, das quais a doença de Alzheimer constitui um dos diagnósticos, mas não o único. “Acompanhando as mesmas pessoas (coorte A) ao longo do processo de envelhecimento, constatamos que o comprometimento cognitivo passou de 13,2%, em 2000, para 14,3%, em 2006, e 18,7%, em 2010”, disse.
Para o conjunto dos entrevistados de 2010 (coortes A, B e C), por ordem de prevalência, as principais enfermidades crônicas relatadas foram hipertensão (66,7%), doenças articulares (31,8%), diabetes (25,0%) e problemas cardíacos (22,9%).
“É importante ressaltar que, muitas vezes, as enfermidades não são diagnosticadas, nem mesmo reconhecidas como tal. Isso acontece principalmente em relação às doenças articulares. Existe o mito de que ter dor nas articulações é uma coisa normal após uma certa idade. ‘É coisa de velho’, costuma ser dito, como se esses transtornos constituíssem uma fatalidade. Isso de forma alguma é verdadeiro. As doenças articulares podem ser evitadas, e também tratadas”, sublinhou Lebrão.
Também muitas vezes não são reconhecidos os quadros de depressão. “Trata-se de um levantamento mais difícil, porque a depressão não é uma condição fixa. A pessoa pode estar deprimida e, no dia da entrevista, se apresentar bem disposta. Ou ter sua condição depressiva mascarada pela medicação. Por isso, adotamos no Sabe duas formas de avaliação: por meio do teste GDS (Geriatric Depression Scale) e perguntando se alguma vez um médico ou enfermeiro disse ao entrevistado que ele tinha depressão. Entre os entrevistados de 2010, cerca de 17% responderam afirmativamente a essa pergunta – percentual que foi ainda mais elevado entre as mulheres”, relatou a pesquisadora.
A depressão está, muitas vezes, associada à solidão. O Sabe mostrou que cerca de 16,5% dos habitantes com 60 anos e mais do município de São Paulo moram sozinhos – as mulheres muito mais do que os homens. E que esse percentual sobe para 25%, uma em cada quatro pessoas, na faixa dos 80 anos ou mais. “É urgente a criação de redes de apoio, com serviços integrados. A pessoa pode continuar vivendo sozinha. Mas ela deve poder contar com suporte rápido no caso de alguma intercorrência e com suporte prolongado no dia a dia. Isso já existe nos países desenvolvidos. Por que não pode ser implantado também aqui?”, concluiu Lebrão.