Karina Toledo | Agência FAPESP – Embora não sejam digeríveis pelo organismo humano, alguns tipos de polissacarídeos encontrados em alimentos – como, por exemplo, a pectina – parecem ter a capacidade de modular o funcionamento de células do sistema imunológico. Identificar compostos com essa propriedade é o objetivo de um por João Roberto Oliveira do Nascimento, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP), no âmbito do Centro de Pesquisa em Alimentos (, na sigla em inglês) – um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão () apoiados pela FAPESP.
“Estamos fazendo uma triagem de polissacarídeos hidrossolúveis encontrados em banana, goiaba, chuchu e algumas espécies de cogumelos. Com base na composição da molécula e em dados da literatura científica, é possível especular se ela tem potencial imunomodulador. As mais promissoras vamos purificar e testar em culturas de células do sistema imune”, contou o pesquisador.
Dependendo do resultado observado in vitro e, posteriormente, in vivo, disse Nascimento, o grupo poderá pensar em extrair o composto para usá-lo como suplemento alimentar ou como ingrediente em diversas formulações.
O trabalho foi apresentado durante o 1º FoRC Symposium: Advances in Food Science and Nutrition, realizado nos dias 2 e 3 de setembro na FCF-USP. O evento reuniu diversos projetos em andamento nas quatro subáreas em que o FoRC foi dividido: “Sistemas Biológicos em Alimentos”; “Alimentos, Nutrição e Saúde”; “Qualidade e Segurança dos Alimentos”; e “Novas Tecnologias e Inovação”.
Ao lado de Adriana Mercadante, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (FEA-Unicamp), Nascimento coordena o pilar “Sistemas Biológicos em Alimentos”, cujo objetivo principal é estudar a composição química de frutas, hortaliças e fungos.
“A composição química tem relação direta tanto com a qualidade sensorial – cor, textura e sabor – quanto com os efeitos fisiológicos no organismo. A ideia é estudar não apenas os componentes presentes no alimento durante o cultivo como também as transformações que eles sofrem durante o envelhecimento, armazenamento e processamento”, explicou Nascimento.
No projeto liderado por Mercadante, o objetivo é identificar carotenoides (pigmentos que conferem cor vermelha, alaranjada ou amarela aos alimentos) presentes em frutas da biodiversidade brasileira e descobrir se proporcionam benefícios à saúde. A pesquisadora vem desenvolvendo novas metodologias para facilitar esse tipo de análise.
Já na pesquisa coordenada por Eduardo Purgatto, da FCF-USP, estão sendo comparadas três variedades de pitanga. Embora sejam da mesma espécie – Eugenia uniflora – uma apresenta cor amarela (conferida pelo betacaroteno), a outra roxa (por causa das antocianinas) e a terceira e mais comum, vermelha (graças ao licopeno).
“Os três pigmentos têm ação biológica diferente, embora sejam todos antioxidantes. A antocianina tem sido estudada por sua ação anti-inflamatória. O consumo de licopeno já foi associado em estudos anteriores à redução no risco de câncer de próstata e de pulmão. Já o betacaroteno parece ter efeito contra câncer hepático”, afirmou Purgatto.
Com o auxílio de técnicas de transcriptômica (análise de expressão de genes em larga escala) e metabolômica (que faz um amploscreening dos metabólitos produzidos pela planta), os pesquisadores tentam compreender como são reguladas as vias metabólicas relacionadas à síntese dos pigmentos.
“Queremos descobrir se há influência do solo ou do clima ou se foi uma mutação natural que surgiu. Com a compreensão do que influencia o metabolismo de formação de pigmentos, podemos interferir nesse processo e melhorar atributos de qualidade na planta. E também queremos entender o que acontece com esses pigmentos quando a fruta é armazenada ou processada para a produção de suco, por exemplo”, explicou Purgatto.
Impactos na saúde
Investigar como os compostos bioativos dos alimentos, particularmente os polifenóis, agem no organismo desde o nível celular e como são absorvidos e metabolizados é o foco do pilar “Alimentos, Nutrição e Saúde”, coordenado pelos professores Franco Lajolo e Thomas Ong, ambos da FCF-USP.
“Essencialmente, estudamos por que é importante comer fruta e verdura”, brincou Lajolo. “Há estudos epidemiológicos que associam o consumo de vegetais a um menor risco de desenvolver doenças, mas são raros os ensaios clínicos de intervenção, nos quais um alimento é dado ao paciente para verificar seu efeito na saúde e estudar os mecanismos envolvidos nessa ação biológica”, disse o pesquisador.
O grupo tem estudado diversas variedade de laranja, segundo Lajolo a principal fonte de polifenóis da dieta brasileira, e também frutos regionais como jabuticaba, grumixama e uma variedade de milho-roxo desenvolvida em parceria com a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP).
“Isolamos um determinado componente do alimento, damos a roedores e depois estudamos o impacto na urina, no plasma sanguíneo, nos órgãos e eventuais modificações no metabolismo. Tudo ao mesmo tempo. Também fazemos estudos de mecanismos de ação em culturas de células”, contou Lajolo.
Uma vez comprovado o efeito biológico in vivo, disse o pesquisador, será possível aplicar o conhecimento de diferentes maneiras. Uma delas é selecionar variedades de plantas que produzam quantidades maiores do composto bioativo de interesse. Outra possibilidade é desenvolver processos tecnológicos para processar o alimento sem comprometer suas propriedades funcionais. Além disso, torna-se possível calcular quanto é preciso ingerir de um determinado alimento para se obter o benefício à saúde.
“São todos desdobramentos na direção de uma agricultura biomédica”, afirmou Lajolo.
Mais qualidade e menos risco
Assegurar a inocuidade e a qualidade microbiológica dos alimentos ao longo de toda a cadeia produtiva é um dos objetivos do terceiro pilar do CEPID, intitulado “Qualidade e Segurança dos Alimentos”, coordenado pelas professoras Mariza Landgraf e Bernadette Dora Gombossy de Melo Franco, também da FCF-USP.
Um dos projetos dessa subárea está focado em vegetais orgânicos e busca bactérias patogênicas como Escherichia coli produtora de toxina Shiga (STEC) e também as do gênero Salmonella, associadas a quadros severos de diarreia.
“Escolhemos orgânicos porque, normalmente, os produtores usam fezes de animais como fertilizante. Mas não encontramos STEC em nenhuma das amostras e a ocorrência de Salmonella foi baixa. Acreditamos que isso se deve ao fato de os agricultores adotarem o processo de compostagem, durante o qual a matéria orgânica fica fermentando durante dois ou três meses, acidificando o pH. Isso faz com que microrganismos patogênicos, se presentes, sejam eliminados”, contou Landgraf.
Em outro projeto do grupo, emprega-se microbiologia preditiva e modelagem matemática para estabelecer as medidas de controle necessárias para evitar que a contaminação cruzada durante o manuseio de alimentos prontos para consumo cause danos à saúde da população.
Estuda-se principalmente a bactéria Listeria monocytogenes, que pode causar meningite e encefalite e provocar aborto em pessoas de risco, e que está frequentemente presente no ambiente de produção de alimentos.
Simulam-se em laboratório procedimentos usados em locais de venda desses produtos, como, por exemplo, fatiamento de frios em supermercados e padarias. “Os resultados são empregados para prever o comportamento de microrganismos nesses alimentos e verificar quais medidas de controle são mais eficientes”, contou Landgraf.
“Verificamos que um fatiador contaminado com essa bactéria, que é comum em queijos, pode ser a fonte de contaminação de até 200 fatias de presunto, se a limpeza e a temperatura ambiente não forem adequadas”, acrescenta Melo Franco.
Outros projetos que integram o terceiro pilar se dedicam a avaliar substâncias naturais com ação antimicrobiana que possam ser usadas como aditivos alimentares ou acrescentadas em embalagens para evitar a multiplicação de microrganismos. Alguns exemplos são o limoneno, extraído do óleo essencial de limão, e o eugenol, extraído do cravo.
Os pesquisadores estudam também compostos antimicrobianos produzidos por bactérias naturalmente presentes nos alimentos, como as bacteriocinas, que podem ser ativas contra outros microrganismos indesejáveis.
Inovação
Fortemente interligado aos outros três pilares, “Tecnologia e Inovação” tem a missão de desenvolver processos tecnológicos que possibilitem produzir ingredientes funcionais em larga escala e transformar o conhecimento gerado nas diversas pesquisas do CEPID em produtos. A coordenação é de Carmen Tadini, da Escola Politécnica da USP, e Paulo José Sobral, da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da USP.
Um dos projetos em fase mais avançada, que já conta com parceria de uma empresa de Ribeirão Preto, visa a obter em escala industrial a farinha de banana verde com alto teor de amido resistente.
“Desenvolvemos um protótipo de um secador híbrido que está em fase de teste e estamos determinando os melhores parâmetros para obtenção dessa farinha, que contém um tipo de amido que não é digerido no intestino delgado, somente no intestino grosso e, portanto, não é convertido rapidamente em açúcar”, disse Tadini.
Estudos coordenados pela pesquisadora Elizabete Wenzel de Menezes, da FCF-USP, mostraram que a farinha de banana verde promove a saciedade, melhora a mobilidade intestinal e favorece o crescimento de bactérias intestinais benéficas à saúde.
“Usamos a farinha de banana verde na produção de barrinhas de cereais, sopas e outras formulações e observamos que ela impede que o alimento cause um pico glicêmico no organismo, um dos fatores que podem favorecer o desenvolvimento de doenças como diabetes”, disse Tadini.
De acordo com Sobral, há ainda uma linha voltada ao desenvolvimento de embalagens bioativas, feitas à base de substâncias naturais como gelatinas e polissacarídeos, que aumentam o tempo de prateleira do alimento e reduzem o risco de contaminação.
“O grande desafio é tornar a embalagem viável economicamente, pois ela não será como o plástico, que serve para qualquer alimento. Será uma embalagem específica para cada produto, com a vantagem de ser biodegradável. E sabemos que há demanda”, disse o pesquisador.
Desafios
Durante a abertura do simpósio, o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, disse que a instituição espera que as pesquisas desenvolvidas no âmbito dos CEPIDs tenham grande impacto científico, econômico e social.
“Nossa expectativa é que os pesquisadores desenvolvam conexões com a indústria e com os setores governamentais relacionados com alimentos. É preciso boa articulação entre os quatro pilares deste CEPID para que seja possível somar resultados”, disse Brito Cruz.
De acordo com Melo Franco, coordenadora do FoRC, fazer a transferência do conhecimento gerado nas pesquisas a para sociedade, e principalmente para a indústria de alimentos, é o maior desafio do grupo.
“No Brasil, temos poucas empresas na área de alimentos com fôlego para investir em pesquisa, desenvolvimento e inovação. As grandes multinacionais trazem produtos desenvolvidos em centros de pesquisa localizados em seus países de origem. As empresas brasileiras têm margem de lucro apertada. Mas já temos algumas negociações promissoras em andamento”, disse Melo Franco.
O evento ainda contou com a participação de membros do Conselho Consultivo Internacional do FoRC, que apresentaram as pesquisas realizadas em suas instituições de origem. Entre eles estavam Didier Attaix (Center for Food Safety and Security Systems), K.P. Sandeep (North Carolina State University), Paul Kroon (Institute for Food Research), Donald Schaffner (Rutger University) e Robert Buchanan (Center for Food Safety and Security Systems da University of Maryland).