Elton Alisson | Agência FAPESP – O sistema imunológico humano pode falhar em sua tarefa de identificar órgãos e tecidos do corpo, reconhecendo-os como elementos próprios, e passar a atacá-los, desencadeando o surgimento de doenças autoimunes.
Um estudo realizado por pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) forneceu indicações de como isso ocorre em nível molecular.
Eles identificaram moléculas de microRNAs (miRNAs) capazes de alterar a expressão de determinados genes de defesa de células do sistema imunológico – os linfócitos T –, fazendo com que ataquem inadvertidamente células beta do pâncreas, produtoras de insulina, e causem o surgimento do diabetes mellitus do tipo 1.
Resultado do Projeto Temático , apoiado pela FAPESP e realizado no âmbito do – um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (), financiados pela Fundação –, o estudo foi publicado na revista PLoS One.
O estudo também faz parte de uma pesquisa de doutorado realizada por Thaís Arouca Fornari Tavares no programa de Pós-graduação em Genética da FMRP. A pesquisadora realizou mestrado com da FAPESP.
“Desvendamos qual a participação específica de moléculas de miRNAs na alteração do controle genético molecular de linfócitos T que faz com que ataquem células beta produtoras de insulina no pâncreas”, disse Geraldo Aleixo da Silva Passos Júnior, professor associado das Faculdades de Odontologia e Medicina da USP de Ribeirão Preto e coordenador do projeto, à Agência FAPESP.
De acordo com o pesquisador, já se sabia como se dá o ataque dos linfócitos T às células beta do pâncreas, causando a doença autoimune que representa entre 5% e 10% dos casos de diabetes no Brasil, segundo estimativas da Sociedade Brasileira de Diabetes.
Após se desenvolverem no timo – uma glândula torácica –, os linfócitos T migram para o baço e, posteriormente, vão para a circulação sanguínea para desempenhar suas funções imunológicas.
Alguns clones de linfócitos T, do tipo CD4+ ou CD8+, contudo, não reconhecem as proteínas pancreáticas como elementos próprios do organismo, infiltram-se no pâncreas e começam a destruir células beta produtoras de insulina.
Essa reação autoimune é conhecida como insulite e acaba provocando o diabetes mellitus do tipo 1.
“Apesar desse processo ser conhecido, ainda não se sabia quais os elementos envolvidos na alteração do controle do genoma funcional desses linfócitos T que atacam as células beta produtoras de insulina”, explicou Passos.
A fim de tentar identificá-los, os pesquisadores acompanharam o desenvolvimento dos linfócitos T desde sua maturação no interior da glândula do timo, passando pelo baço, até atingirem o interior do pâncreas, no momento em que destroem as células produtoras de insulina.
Para isso, eles utilizaram como modelo experimental uma linhagem especial de camundongos NOD – sigla em inglês de Non-obese diabetic, ou diabetes não causada por obesidade, em tradução livre –, que apresenta um quadro de diabetes mellitus do tipo 1 comparável com a doença em humanos.
“Quando esse tipo de camundongo mutante atinge entre cinco e oito meses de idade, os linfócitos T de seu sistema imunológico começam a atacar as células beta produtoras de insulina no pâncreas. Em humanos esse processo também ocorre, mas, como é gradual, pode levar alguns anos e o diabetes do tipo 1 ser diagnosticado na infância ou no início da adolescência”, disse Passos.
Os linfócitos T produzidos pelo sistema imunológico dos camundongos NOD foram isolados em suas diferentes fases de desenvolvimento, iniciando pelo timo, passando pelo baço até chegar ao pâncreas.
Identificação de interação
Por meio de uma técnica de genômica funcional chamada microarrays, os pesquisadores fizeram um estudo completo da expressão gênica – a expressão dos genes – dos linfócitos T dos camundongos em cada uma dessas três fases.
Com base nisso, eles conseguiram identificar RNAs mensageiros (mRNAs) – responsáveis por levar a informação do DNA do núcleo até o citoplasma – e miRNAs – que interagem com os mRNAs no citoplasma das células, impedindo que fabriquem proteínas – dos linfócitos T dos camundongos.
Por meio de uma ferramenta de bioinformática, os pesquisadores fizeram uma análise do conjunto completo dos mRNAs e dos miRNAs e conseguiram identificar quais deles interagem entre si durante a evolução dos linfócitos T.
“Foi a primeira vez que um grupo de pesquisa demonstrou todas as interações entre mRNAs e miRNAs nos linfócitos T desde que surgem no timo, passando pelo baço até chegar ao pâncreas, no contexto do diabetes melittus do tipo 1”, afirmou Passos.
Os resultados das análises apontaram que dois mRNAs que codificam respectivamente duas proteínas dos linfócitos T – o Ccr7 e o Cd247 (CD3 zeta) – têm sua expressão alterada nos linfócitos T que atacam o pâncreas.
Os pesquisadores constataram que essa alteração é resultado da ação de um miRNA (miR-202-3p), e isso pode levar à autoimunidade contra o pâncreas.
“Já havia sido levantada a possibilidade desses dois mRNAs participarem do processo de autoimunidade. Agora, descobrimos como isso ocorre, identificando um miRNA que atua no descontrole molecular dos linfócitos T que atacam as células beta produtoras de insulina”, disse Passos.
Na avaliação do pesquisador, o estudo abre a perspectiva de desenhar oligonucleotídeos – fragmentos de DNA ou de RNA – que poderiam ajudar no controle do diabetes mellitus do tipo 1.
“Identificamos possíveis alvos. Agora, pretendemos realizar um novo estudo para avaliar de que forma poderíamos interferir nesse processo inflamatório, que é a insulite, impedindo a ação do miR-202-3p, e verificar se isso altera o desenvolvimento do diabetes mellitus do tipo 1”, disse Passos.
O artigo “Comprehensive survey of miRNA-mRNA interactions reveals that Ccr7 and Cd247 (CD3 zeta) are posttranscriptionally controlled in pancreas infiltrating T lymphocytes of Non-Obese Diabetic (NOD) mice” (doi: 10.1371/journal.pone.0142688), de Fornari e outros, pode ser lido na revista PloS One em .