Karina Toledo, de Campos do Jordão | Agência FAPESP – O vírus Zika está se modificando tão rapidamente em pacientes brasileiros que há risco de surgir num futuro breve sorotipos diferentes do patógeno, como já acontece no caso da dengue. Tal fato poderia dificultar a obtenção de uma vacina, bem como comprometer a eficácia dos testes para diagnóstico já desenvolvidos.
O alerta foi feito pelo professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) , que proferiu a conferência de abertura da Reunião Anual da Federação de Sociedades de Biologia Experimental (). O evento segue até o dia 6 de setembro em Campos do Jordão.
“Hoje existe apenas um único Zika e, uma vez infectada, a pessoa se torna imune. Mas o vírus está em franca mutação e não seria surpresa se em breve surgirem o Zika 2, 3, 4…”, disse Durigon em entrevista à Agência FAPESP.
A afirmação está baseada na análise de dados de três pacientes assintomáticos – dois homens e uma mulher – que foram acompanhados de perto durante meses pela equipe do ICB-USP. Semanalmente, os pesquisadores colhiam amostras de sangue, saliva, urina e, no caso dos homens, esperma.
O material era enviado para os Estados Unidos onde, por meio de uma parceria com o exército norte-americano, o genoma completo do patógeno era sequenciado. O estudo foi feito no âmbito da Rede de Pesquisa sobre Zika Vírus em São Paulo (Rede Zika), que conta com apoio da FAPESP.
“Semana a semana, nós comparávamos o que havia de diferente no genoma viral. Chegamos a ver no mesmo paciente cepas compartimentadas, ou seja, o vírus presente no sêmen era diferente do que havia na urina. Em todos os casos, o patógeno que encontramos no estágio final da infecção não era o mesmo que entrou no paciente”, contou Durigon.
Segundo o pesquisador, os pacientes do sexo masculino permaneceram eliminando o Zika em grandes quantidades pelo esperma por até seis meses. Um deles apresentou o vírus na saliva durante três meses.
“O Zika continuou se replicando nas células do testículo durante todo esse tempo e, por microscopia eletrônica, pudemos perceber que os espermatozoides já se formavam infectados. Há risco, portanto, de ocorrer uma concepção com esperma contaminado. Se a gravidez vai para frente nesses casos e quais as consequências para o feto é algo que não temos ideia”, comentou Durigon.
A possibilidade de transmissão sexual, segundo o pesquisador, amplia fortemente a capacidade do vírus de se disseminar. Na avaliação de Durigon, é preciso urgentemente mudar a cultura médica, que ainda centra os cuidados pré-natais nas mulheres.
“Não adianta testar apenas as gestantes para a presença do vírus, recomendar apenas às mulheres que usem repelente e evitem áreas de risco durante a gestação e deixar os homens à vontade, seguindo a vida normalmente. Elas podem ser contaminadas pelos próprios parceiros e isso é algo que os médicos ainda não estão atentos”, alertou.
Exame sorológico
Durante a conferência, Durigon relembrou o início da formação da Rede Zika em São Paulo e relatou como a rápida articulação entre comunidade científica e agência de fomento possibilitou avançar o conhecimento sobre o Zika.
“O vírus foi isolado pela primeira vez no Brasil em novembro de 2015, pelo pesquisador Pedro Vasconcelos do Instituto Evandro Chagas, no Pará. Nosso grupo do ICB-USP pediu uma amostra, que veio pelo correio quando ainda montávamos nossa decoração de Natal”, contou Durigon.
Foram então acionados os pesquisadores paulistas que entre 2000 e 2007 fizeram parte da Rede de Diversidade Genética de Vírus (VGDN), um projeto apoiado pela FAPESP que viabilizou no Estado de São Paulo a instalação de uma importante infraestrutura para pesquisas na área de virologia.
“Muitos dos integrantes dessa rede tinham em 2015 projetos apoiados em andamento, com outros temas. A Fundação rapidamente aprovou aditivos para esses projetos e todos os esforços foram centrados no estudo do Zika. Dessa forma, rapidamente, conseguimos cultivar os isolados virais em laboratório e distribuir para vários grupos de pesquisa do país”, lembrou.
Segundo Durigon, a rápida reação da comunidade científica paulista inspirou grupos de outros estados e também outras agências de fomento – possibilitando a criação de uma Rede Zika em âmbito nacional.
Entre os avanços alcançados desde então estão o desenvolvimento de testes moleculares para diagnóstico (capaz de detectar o RNA viral nas amostras de pacientes durante a infecção), a comprovação de que o vírus causa uma síndrome congênita que pode ou não incluir microcefalia, o desenvolvimento de vacinas experimentais e, finalmente, a validação de um teste sorológico (capaz de detectar no sangue anticorpos contra o vírus mesmo passada a infecção) que não dá reação cruzada com anticorpos contra a dengue.
“Finalmente, depois de dois anos, podemos dizer com orgulho que nós conseguimos um teste sorológico realmente eficaz para detectar o Zika. Já validamos em mais de mil amostras da população de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, e em 800 amostras de pacientes de Salvador (BA), entre eles mulheres que tiveram filhos com e sem microcefalia, pacientes que já tiveram febre amarela e dengue. Se esse teste consegue identificar o Zika em Salvador, funciona em qualquer parte do mundo”, disse Durigon.
Também integram a equipe que desenvolveu o método sorológico os pesquisadores do ICB-USP Paolo Zanotto e Luís Carlos de Souza Ferreira (leia mais em: ).
O próximo passo, segundo o pesquisador, é coletar mais amostras do Estado de São Paulo e capital para investigar qual foi o real número de pessoas infectadas até o momento na região. Como até 80% dos casos podem ser assintomáticos, sem o teste sorológico torna-se impossível saber o real tamanho da epidemia e a porcentagem da população que ainda é suscetível ao vírus.
“São Paulo, aparentemente, ainda teve pouco Zika. Em Salvador os testes estão mostrando que grande parte da população já foi contaminada, gestantes inclusive, e por isso houve muitos casos de microcefalia. É provável que Bahia, Pernambuco e Paraíba fiquem pelo menos uns quatro anos sem muitos casos, até que surja uma nova população suscetível. Mas em São Paulo ainda não sabemos”, avaliou.
A grande preocupação hoje, segundo Durigon, são as crianças nascidas de mães que tiveram Zika durante a gestação sem saber. “A criança pode ter uma lesão cerebral, mas não ter microcefalia, e não vai ser acompanhada cuidadosamente. O problema só vai aparecer quando ela apresentar dificuldades motoras ou de aprendizado lá na frente. Podemos ter uma geração de crianças com complicações das mais variadas e não vamos saber como enfrentá-las”, alertou.
Assim que o teste sorológico estiver disponível em larga escala, disse Durigon, é importante que o maior número possível de crianças nascidas no período sejam testadas. Os casos positivos devem ser avaliados com mais cautela e submetidos a exames de imagem. “O que estamos vendo é apenas a ponta do iceberg e não sabemos o que ainda tem por baixo”, afirmou.