Karina Toledo, de Campos do Jordão | Agência FAPESP – Basta um trago no cigarro e a nicotina inalada com a fumaça é absorvida pelo pulmão, entra na corrente sanguínea e quase instantaneamente ativa na superfície das células nervosas os chamados receptores nicotínicos de acetilcolina, causando a sensação de euforia seguida por relaxamento que a torna tão viciante. Já está comprovado que o hábito de fumar pode causar enfermidades graves, como enfisema e câncer. Um novo estudo, porém, revelou que estimular farmacologicamente um tipo específico de receptor nicotínico em células do sistema imune pode ser uma estratégia para tratar doenças pulmonares inflamatórias.
Nesse caso, o efeito terapêutico está associado à ativação de receptores nicotínicos do subtipo alfa-7 em macrófagos – as células que formam a linha de frente do sistema imunológico e são responsáveis por desencadear a resposta inflamatória diante de uma potencial ameaça.
Resultados da pesquisa, realizada na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com , foram apresentados pela pesquisadora Carla Máximo Prado, do Instituto de Saúde e Sociedade (ISS-Unifesp). A palestra ocorreu no dia 4 de setembro, durante a 32ª Reunião Anual da Federação de Sociedades de Biologia Experimental (), em Campos do Jordão.
“Em testes com animais, a estimulação específica dos receptores nicotínicos do subtipo alfa-7 por uma droga experimental chamada PNU-282987 reduziu a inflamação em um quadro alérgico crônico, semelhante ao da asma, e em um modelo de inflamação pulmonar semelhante à Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA), insuficiência respiratória causada principalmente pelo acúmulo de líquido nos pulmões, normalmente associada a um processo infeccioso”, contou Prado em entrevista à Agência FAPESP.
Como explicou a pesquisadora, tanto os receptores nicotínicos quanto outro grupo de receptores celulares conhecidos como muscarínicos fazem parte do chamado sistema colinérgico – um ramo do sistema nervoso que tem como principal neurotransmissor a acetilcolina.
No pulmão, inicialmente, a acetilcolina ficou conhecida por sua ação broncoconstritora, ou seja, de fechamento das vias aéreas. Diversos medicamentos para o tratamento da asma e da doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) têm como princípio ativo substâncias que impedem a acetilcolina de se ligar aos receptores muscarínicos.
Estudos mais recentes, porém, sugerem que o mesmo neurotransmissor teria um efeito protetor para o pulmão que estaria relacionado à ativação dos receptores nicotínicos.
Em um estudo anterior, feito em colaboração com cientistas da University of Western Ontario, no Canadá, o grupo da Unifesp observou que camundongos geneticamente modificados para não expressar uma proteína chamada VAChT – que atua como transportadora de acetilcolina e, portanto, possibilita sua liberação na região da sinapse – apresentam uma resposta inflamatória exacerbada no pulmão mesmo sem qualquer tipo de doença ou alergia.
“Esses animais têm uma redução de 75% na liberação de acetilcolina e, como consequência, sofrem um processo de inflamação e de remodelamento das vias aéreas semelhantes ao de portadores de asma. Apresentam ainda alteração nas vias de sinalização celular envolvidas na resposta inflamatória pulmonar”, contou Prado.
Esses resultados foram divulgados em um publicado em 2015 na revista PLOS ONE.
A partir desses achados, o grupo da Unifesp decidiu testar a hipótese de que estimular o sistema colinérgico com uma droga capaz de se ligar ao tipo específico dos receptores nicotínicos poderia amenizar quadros inflamatórios no pulmão de animais sem a modificação genética.
Resultados promissores
Os primeiros testes foram feitos em um modelo clássico de lesão pulmonar aguda. Para induzir um quadro semelhante ao da SDRA, os pesquisadores injetam na traqueia de camundongos uma toxina extraída da membrana de bactérias gram-negativas – o lipopolissacarídeo bacteriano (LPS).
“Em uma parte dos animais, fizemos um tratamento com PNU-282987, composto que estimula o receptor nicotínico alfa-7, cerca de 30 minutos antes de injetar o LPS. Em outro grupo, o tratamento foi feito seis horas após a injeção, quando a inflamação atinge seu auge. Nos dois casos, observamos uma redução significativa da inflamação em comparação aos roedores não tratados”, contou Prado.
Além de diminuir o edema pulmonar (o inchaço do órgão), a terapia diminuiu a liberação, por células imunes, de moléculas pró-inflamatórias, como interleucina-1-beta (IL-1?), fator de necrose tumoral alfa (TNF-?) e interleucina-6 (IL-6). Ao analisar o lavado broncoalveolar (instilação seguida de aspiração de soro fisiológico no pulmão), o grupo notou uma redução na presença de células imunes, particularmente neutrófilos e macrófagos.
“Também avaliamos o efeito desta droga em macrófagos isolados de pulmão e observamos que a porcentagem do tipo M-1, que tem um perfil pró-inflamatório, estava reduzida. Ao mesmo tempo, estava aumentada a porcentagem de macrófagos M-2, tipo mais relacionado à reparação de tecidos lesionados. Associado a isso, houve melhora da função pulmonar nos animais tratados”, explicou Prado.
Por último, os pesquisadores observaram no tecido pulmonar que o tratamento reduziu a ativação da proteína NF-kB – um fator de transcrição que estimula a produção de moléculas inflamatórias pelas células do sistema imune.
Parte dos experimentos foi feita durante o e o de Nathalia Montouro Pinheiro, bolsista da FAPESP. Também colaboraram os pesquisadores Milton de Arruda e Iolanda Tibério, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), além de Niels Câmara, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
Os dados foram divulgados em publicado em 2017 no FASEB Journal.
Como contou Prado, o tratamento também surtiu efeito positivo no modelo de inflamação crônica, no qual foi adotado um método clássico de indução da asma. O procedimento consiste em sensibilizar o sistema imune dos roedores com duas injeções da proteína ovoalbumina – um dos principais componentes da clara do ovo – associada a uma substância adjuvante, que potencializa resposta imune a esse antígeno. Depois de 21 dias, a mesma proteína – contra a qual o sistema imune dos animais já desenvolveu anticorpos – é inalada em quatro diferentes momentos.
“Nesse modelo, o animal desenvolve uma resposta inflamatória crônica que acaba levando a um remodelamento das vias aéreas. Ocorre a deposição de colágeno nas vias aéreas, além da hipertrofia das células produtoras de muco e das células da musculatura lisa. Tudo isso associado a resposta inflamatória crônica acaba resultando em perda de função pulmonar”, explicou Prado.
Parte dos camundongos recebeu o tratamento com PNU-282987 a partir do 21º após a primeira injeção de ovoalbumina – ao mesmo tempo em que começaram os desafios inalatórios com o antígeno. O tratamento foi feito por injeção na barriga durante sete dias.
“Observamos uma redução no processo de remodelamento pulmonar e redução, no lavado broncoalveolar, da presença de eosinófilos – principal tipo de célula imune associada à asma”, contou Prado.
Esses experimentos fazem parte do projeto de doutorado da aluna Cláudia Pontes.
A cura das plantas
Ainda durante a FeSBE, Prado apresentou resultados de uma segunda linha de pesquisa voltada a testar em modelos de asma e de SDRA um tratamento com sakuranetina – flavonoide isolado da Baccharis retusa, uma planta encontrada na Serra da Mantiqueira e pertencente à mesma família do girassol (Asteraceae).
“Mostramos que a sakuranetina tem efeito tanto preventivo quanto terapêutico. Estamos tentando entender em quais mecanismos o composto atua, ou seja, quais vias de sinalização celular ele inibe ou amplifica para proporcionar a ação anti-inflamatória. (Leia mais em: ).
Outro fitoquímico em estudo no laboratório de Prado é o diidrodieugenol, isolado da planta Nectandra leucanta, espécie da família do abacate (Lauraceae). “A grande vantagem desse composto é a facilidade da síntese laboratorial a partir de reagentes simples e baratos. Os resultados foram promissores principalmente no modelo de asma”, contou Prado. Estes estudos fazem parte da Iniciação Científica de Rafael Cossi, , e do doutoramento de Fernanda Roncon.
Os estudos com os compostos naturais são feitos em parceria com o professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) João Henrique Ghilardi Lago.