Karina Toledo | Agência FAPESP – Envolvidas na regulação da divisão celular, as proteínas VRK1 e VRK2 são consideradas potenciais alvos para o tratamento de alguns tipos de câncer, entre eles próstata, ovário e intestino. Com o objetivo de entender melhor o papel dessas proteínas nas células humanas – em um contexto com e sem doença –, pesquisadores brasileiros trabalham no desenvolvimento de pequenas moléculas sintéticas capazes de modular sua atividade em modelos de estudo. Resultados recentes do trabalho foram divulgados na revista , do grupo Nature.
“Dados da literatura científica indicam que a VRK1 e a VRK2 são encontradas em quantidades mais elevadas nas células malignas do que nas normais, mas sua função exata ainda não é conhecida”, disse Rafael Couñago, pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e primeiro autor do artigo.
A pesquisa é resultado da colaboração entre o Centro de Biologia Química de Proteínas Quinases (SGC-Unicamp) e o Aché Laboratórios Farmacêuticos. Ambos estão vinculados ao Structural Genomics Consortium (SGC) – parceria público-privada que reúne mais de 400 cientistas de universidades, indústrias farmacêuticas e entidades sem fins lucrativos, em diversos países.
e liderado pelos pesquisadores Jonathan Elkins, Katlin Massirer, Opher Gileadi e Paulo Arruda, o SGC-Unicamp tem como objetivo desvendar a função de proteínas do tipo quinase, responsáveis por regular processos importantes do organismo, como divisão, proliferação e diferenciação celular. Embora sejam consideradas alvos prioritários para o desenvolvimento de fármacos, estima-se que apenas 80 das cerca de 500 quinases identificadas no genoma humano já tenham sido bem estudadas.
“VRK significa, na sigla em inglês, algo como quinase relacionada ao vírus vaccínia. O nome se deve ao fato de o primeiro membro desse grupo de proteínas ter sido identificado no genoma viral, embora no genoma humano existam moléculas semelhantes”, explicou Couñago.
Segundo o pesquisador, trabalhos de outros grupos mostraram que, quando o nível dessas proteínas é reduzido artificialmente em laboratório – por exemplo, usando o método do RNA de interferência –, o ciclo celular ocorre de maneira anômala.
“Ninguém sabe exatamente o papel das VRKs no organismo, mas parece ser algo importante porque sua superexpressão está relacionada com diferentes tipos de tumores. Decidimos então fazer a caracterização da VRK1 e 2 para, no futuro, desenvolver moléculas capazes de inibir seletivamente a ação dessas quinases – as chamadas sondas químicas”, disse.
No momento em que uma sonda química com as características desejadas for obtida, os pesquisadores poderão usar essa ferramenta para inibir a ação da VRK em modelos de câncer. “Desse modo, poderemos confirmar se a inibição destas proteínas irá afetar as células tumorais e, assim, validar as enzimas como alvo terapêutico”, afirmou Couñago.
Ponto de partida
O trabalho descrito na Scientific Reports começou pela triagem de duas bibliotecas de compostos inibidores comercialmente disponíveis. A primeira, conhecida como PKIS (conjunto inibidor de quinases publicado, na sigla em inglês), foi desenvolvida pelo grupo do SGC sediado na Carolina do Norte, nos Estados Unidos.
A segunda biblioteca contém inibidores de proteínas quinases que já passaram por ensaios clínicos e possuem atividade biológica conhecida. Cada uma conta com aproximadamente 400 moléculas inibidoras de quinases.
A triagem foi feita por high-throughput screening (triagem automatizada em larga escala), um tipo de ensaio bioquímico no qual a enzima é colocada para interagir com centenas de moléculas simultaneamente.
“A ideia era varrer as duas bibliotecas em busca de uma ideia inicial para desenvolver nossa própria sonda química. Interessantemente, encontramos poucos inibidores capazes de se ligar à VRK1 e à VRK2”, contou Couñago.
O grupo então selecionou de cada biblioteca a molécula que revelou a maior capacidade de ligação com as quinases-alvo. Os complexos formados pelos inibidores e pelas proteínas foram então cristalizados para que sua estrutura tridimensional pudesse ser mapeada por meio de cristalografia de raios X.
“Essa técnica nos dá a posição espacial de todos os átomos e mostra como a molécula sintética se encaixa no local em que a proteína deveria se ligar ao ATP [adenosina trifosfato, o substrato da enzima]. Com essa informação, conseguimos sugerir modificações na estrutura do inibidor para tornar sua ação ainda mais potente e específica, ou seja, para que ele não interaja também com outras quinases existentes no organismo”, explicou Couñago.
A parte de análise estrutural, modelagem molecular e design de novos compostos está sob responsabilidade dos cientistas do Aché, coordenados por Cristiano Guimarães, diretor do time de Inovação Radical. A equipe possui químicos medicinais, biólogos moleculares e farmacêuticos especializados no design de novas moléculas e descoberta de novos fármacos.
“Já concluímos o design e a síntese de 97 moléculas, que foram testadas in vitro contra a quinase VRK1. Essa parte do trabalho deverá ser divulgada em artigo a ser publicado no início de 2018”, disse Hatylas Azevedo, gerente de Inovação Radical do Aché.
Azevedo explica que, para uma molécula ser considerada uma sonda química, é preciso que sua atividade seja igual ou inferior a 50 nanomolar. Ou seja, ela tem de ser capaz de inibir pelo menos 50% do funcionamento da quinase com uma concentração igual ou inferior a 50 nanomolar. Portanto, quanto menor o IC50 (concentração que inibe 50% da atividade da enzima), mais potente é o composto.
“A melhor molécula encontrada na etapa de triagem, chamada BI-D1870, apresentou IC50 de 600 nanomolar, mas nossa equipe já conseguiu sintetizar compostos com IC50 abaixo de 100 nanomolar. Para algumas moléculas que desenhamos esperamos ter IC50 entre 20 e 30”, disse Azevedo.
Após obter a molécula com potência suficiente, o grupo terá de avaliar sua seletividade. Para isso, serão feitos ensaios do candidato a sonda com aproximadamente 320 outras quinases e, desse modo, avaliar se há interação com alguma delas além da VRK1.
“Em seguida teremos de avaliar se nossa molécula também consegue inibir a ação da VRK1 no contexto celular, que é mais complexo do que interagir apenas com a proteína in vitro. Nesse caso, o IC50 tem de ser menor que 1 micromolar. Feito isso, poderemos começar a testar a sonda química nos modelos experimentais em oncologia”, afirmou Azevedo.
O artigo Structural characterization of human Vaccinia-Related Kinases (VRK) bound to small-molecule inhibitors identifies different P-loop conformations (doi:10.1038/s41598-017-07755-y), de Rafael M. Couñago, Charles K. Allerston, Pavel Savitsky, Hatylas Azevedo, Paulo H. Godoi, Carrow I. Wells, Alessandra Mascarello, Fernando H. de Souza Gama, Katlin B. Massirer, William J. Zuercher, Cristiano R. W. Guimarães e Opher Gileadi, pode ser lido em: .