Janaína Simões | Agência FAPESP – Uma linhagem do vírus da dengue 1 encontrada no Brasil consegue prevalecer sobre outra, apesar de se multiplicar menos nos mosquitos portadores do vírus e nas células humanas infectadas. A descoberta foi feita em uma pesquisa colaborativa e desenvolvida por diversas instituições nacionais e uma universidade dos Estados Unidos.
Segundo a pesquisa, a linhagem ativa menos a resposta do sistema imunológico dos doentes. Sendo menos combatido, o vírus consegue se multiplicar mais no corpo humano, aumentando as chances de a pessoa ser picada por um mosquito e contagiar outras. Assim, essa linhagem consegue superar outra, com capacidade muito maior de se multiplicar em mosquitos e em pacientes.
Os pesquisadores estudaram as linhagens 1 e 6 (L1 e L6) do vírus da dengue de tipo 1 que afetam a população de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo. O estudo mostrou que, apesar de a L1 ter maior capacidade de multiplicação no mosquito e nas células, a L6 consegue minimizar e até desativar as respostas imunológicas do corpo humano, fazendo com que essa linhagem ocupe o local da L1.
“Havia três práticas para investigar as situações de multiplicação do vírus da dengue e explicar por que uma linhagem superava outra. Nossa pesquisa trouxe à tona um novo fenômeno que explica como um vírus sobrevive em uma população”, disse , professor adjunto do Laboratório de Pesquisas em Virologia do Departamento de Doenças Dermatológicas, Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina de São José do Preto (Famerp) e um dos autores de artigo publicado recentemente na com resultados da pesquisa.
“Mas não se trata só de observar se o vírus se multiplica mais ou menos no mosquito ou na célula humana para entender por que uma linhagem toma o lugar de outra. Precisamos saber como o vírus interage com o ser humano como um todo”, disse Nogueira, que também é presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, à Agência FAPESP.
O estudo traz novos conhecimentos fundamentais para a produção de vacinas no combate à doença. “Compreender, de forma global, como o vírus interage com a população nos ajuda a entender como as vacinas funcionam e é fundamental para podermos desenhá-las”, disse.
Sabe-se que no Brasil houve três introduções de vírus da dengue do tipo 1: as linhagens 1, 3 e 6, todas com o mesmo genótipo. Em São José do Rio Preto, observou-se inicialmente a circulação da L6 pelo menos desde 2008. Em 2010, a L1 foi identificada pela primeira vez na cidade. Por um período, ambas circularam conjuntamente.
Esperava-se que L1 apresentasse maior capacidade de multiplicação nas células e nos mosquitos transmissores, o Aedes aegypti, já que ela chegou depois de L6 e conseguiu se instalar. Porém, a partir de 2013, a L1 começou a diminuir até não ser mais detectada na população, contrariando a expectativa de que a nova linhagem fosse substituir a L6.
Esse fato contrariava o conhecimento científico produzido a respeito da prevalência de uma linhagem sobre outra, um fenômeno chamado substituição de clado (grupo de organismos originados de um único ancestral comum).
Ele pode ocorrer se a linhagem introduzida no meio se multiplica melhor nas células humanas do que a que já estava no ambiente. A outra hipótese é a de que a linhagem que chegou posteriormente se multiplica mais no mosquito. Em ambos os casos, diz-se que o vírus que suplantou o outro tem um “fitness viral” melhor.
Fitness epidemiológico
Uma terceira explicação surgiu a partir de um estudo feito em Porto Rico em 2015, onde se encontrou uma linhagem do vírus da dengue com um fitness viral pior do que as que já estavam no ambiente, mas que acabou prevalecendo sobre as demais. Descobriu-se que essa linhagem inibe o sistema interferon, proteína que induz uma resposta antiviral toda vez que alguém é infectado por vírus, diminuindo sua replicação. Nesse caso, o processo se chama fitness epidemiológico.
No caso brasileiro, nada disso ocorreu. Primeiro, os pesquisadores sequenciaram os genomas das duas linhagens de vírus. Elas têm 47 aminoácidos diferentes, são bem distantes geneticamente, mas competiram entre si e a L6 venceu.
“As informações que tínhamos até ali dizia que o esperado era que a L6 se multiplicasse melhor, daí ter prevalecido, mas, quando olhamos células contaminadas de humanos e de macacos, vimos que a L1 multiplica 10 vezes mais, em média, do que a L6”, disse Nogueira.
Se L1 não o fazia nas células humanas, a hipótese era de que o melhor fitness viral se explicaria porque a L6 se multiplicaria melhor no mosquito. Então os cientistas infectaram oralmente mosquitos cativos – criados para experimentos científicos. Para se alimentar, os mosquitos picavam uma membrana que tinha sangue de camundongo contaminado com vírus da dengue das linhagens 1 e 6. “De novo, a L1 se multiplicou 10 vezes melhor no mosquito do que a L6”, disse.
Surgiu a possibilidade de que os mosquitos cativos talvez não fossem representativos em relação aos encontrados no meio ambiente. Feito um novo experimento, em que ovos do mosquito foram coletados no ambiente e eclodidos em laboratório, chegou-se ao mesmo resultado: L1 continuava a ser mais eficiente na multiplicação do que L6, apesar de os estudos mostrarem que pacientes contaminados com L6 tinham uma carga viral muito maior do que os infectados pela L1.
Sobrou, então, a hipótese do fitness epidemiológico, como ocorreu em Porto Rico, onde foi encontrado um vírus da dengue que codificava um RNA que inibia o interferon. Não se confirmou a interferência no caso brasileiro. “Aí percebemos que estávamos diante de outro mecanismo, diverso dos três já conhecidos”, disse Nogueira.
Para resolver o mistério, os pesquisadores passaram a fazer o estudo dos aspectos imunológicos da interação do vírus com a resposta imune do organismo. Usando sistemas computacionais de predição, verificaram que L1 conseguia ativar muito mais os linfócitos B e T, que compõem o sistema imune, do que L6.
A seguir, nos estudos envolvendo camundongos e células doadas por pessoas contaminadas com o vírus, os cientistas conseguiram estimular e medir a ativação de respostas dos linfócitos B e T, notando que L6 ativava uma resposta mais fraca do que L1. Mediram ainda o nível de citocinas presentes no soro recolhido dos pacientes. As citocinas têm como papel ativar, mediar ou regular a resposta imune.
“De forma geral, observamos que a L1 multiplica muito melhor, mas também ativa fortemente o sistema imune, tanto do humano quanto do camundongo, ou seja, a L1 induz uma resposta muito grande do organismo contra o vírus. Já a L6 se multiplica menos, mas ou ela inibe ou não estimula ou estimula pouco as respostas do sistema imune. Por isso, o organismo demora mais para reconhecer o vírus”, disse.
Graças a isso, a quantidade de vírus da linhagem 6 no ser humano é, em média, 10 vezes maior do que a da 1, constataram os pesquisadores. Eles também observaram que o vírus da linhagem 1 se multiplica muito mais no mosquito e tem replicação local muito maior ao infectar a pessoa.
Só que essa replicação induz uma ativação forte de linfócitos B e T, levando ao aumento de citocinas, ou seja, gera uma forte resposta imune, capaz de inibir a replicação sistêmica do vírus no corpo. Com isso, a carga viral é menor, diminuindo a disseminação para mosquitos, ou seja, menos gente será infectada por ele.
No caso do vírus da linhagem 6, apesar de sua menor capacidade de multiplicação no mosquito e também no local de replicação inicial após picar uma pessoa, ele produz uma ativação fraca de células B e T e estimula a produção de citocinas que, na verdade, inibem a resposta imune, em vez de estimulá-la.
“Com isso, há uma replicação sistêmica na pessoa muito maior, ou seja, uma quantidade de vírus maior na população, o que é capaz de infectar mais mosquitos. Concluímos então que L6 tem um melhor fitness epidemiológico do que o L1, que, por sua vez, tem melhor fitness viral do que L6”, disse Nogueira.
A pesquisa durou dois anos e meio e envolveu um grupo de 24 pesquisadores da Famerp, da Fundação Oswaldo Cruz, das universidades federais do Rio de Janeiro (UFRJ) e Minas Gerais (UFMG), da Unesp e um colaborador estrangeiro – Nikos Vasilakis, pesquisador do Centro de Doenças Tropicais da Universidade do Texas (Galveston), dos Estados Unidos, e também coautor do artigo.
“Empregando análises epidemiológicas, filogenéticas, moleculares e imunológicas, os autores da pesquisa demonstraram que diferenças na resposta imune no hospedeiro determinam a dinâmica da circulação da dengue de duas linhagens circulantes na cidade, sugerindo que os fatores que influenciam a dinâmica da transmissão da dengue são muito mais complexos do que anteriormente se suspeitava”, disse Vasilakis.
O artigo Viral immunogenicity determines epidemiological fitness in a cohort of DENV-1 infection in Brazil (doi: https://doi.org/10.1371/journal.pntd.0006525), de Tauyne Menegaldo Pinheiro, Maurício Lacerda Nogueira e outros, está disponível em: .