Karina Toledo | Agência FAPESP – Avaliar a capacidade das células tumorais de produzir o hormônio melatonina pode se tornar uma estratégia inovadora de medir o grau de malignidade em alguns tipos de câncer, entre eles tumores do sistema nervoso central, pulmão, intestino, pâncreas e bexiga. Em estudos conduzidos no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), o grupo coordenado pela professora mostrou que, nesses casos, o nível de expressão dos genes codificadores das enzimas que sintetizam e degradam melatonina permite predizer que tumores menos agressivos produzem maior quantidade desse hormônio.
As análises revelaram ainda que a maior produção local se correlacionava com uma maior sobrevida dos pacientes. “Estamos agora avaliando em parceria com o professor , da USP de São Carlos, a possibilidade de criar um kit para medir o nível de melatonina em amostras de tecido tumoral obtidas por biópsia. Além de auxiliar no prognóstico da doença, a tecnologia abriria caminho para novas abordagens terapêuticas”, disse Markus à Agência FAPESP.
Os trabalhos da pesquisadora com melatonina tiveram início ainda nos anos 1990. Por meio de estudo com roedores, ela demonstrou que o hormônio que sinaliza para o organismo que está escuro e, portanto, é hora de descansar poderia ser produzido em outros locais do organismo além da glândula pineal, situada dentro do cérebro, como até então era conhecido.
Demonstrou ainda a importância da produção periférica de melatonina na regulação de processos inflamatórios em diferentes contextos fisiológicos e fisiopatológicos.
“Mostramos inicialmente em roedores que, quando há um estímulo inflamatório em um tecido periférico e o sistema imune precisa montar uma resposta de defesa, como diante de uma infecção bacteriana, por exemplo, ocorre o bloqueio da síntese de melatonina pela pineal. Como esse hormônio impede a migração das células de defesa da corrente sanguínea para o local da infecção, a sua redução é essencial para que as células imunes atinjam o local agredido”, disse Markus. A pesquisadora abordou o tema em apresentação no dia 10 de maio no congresso “”, promovido pelo A.C.Camargo Cancer Center em São Paulo.
Depois que a ameaça é reduzida, as próprias células de defesa passam a secretar melatonina no tecido afetado para evitar danos desnecessários. Em seguida, o organismo deve retornar à condição normal, ou seja, cessar a produção periférica de melatonina e restaurar a produção no sistema nervoso central.
A essa comunicação bidirecional entre a glândula pineal e o sistema imune o grupo da USP chamou de eixo imune-pineal. Trabalhos posteriores revelaram que a transição entre a síntese pineal e extrapineal de melatonina é regulada por um complexo proteico chamado NF-?B (fator nuclear kappa B), um conhecido mediador inflamatório.
Uma revisão sobre o tema, reunindo os principais achados de mais de 20 anos de pesquisa, foi publicada em 2017 no . Entre os autores principais, além de Markus, estão e , ambos do IB-USP.
Produção periférica e câncer
Segundo Markus, há casos em que o organismo não consegue, por algum motivo, voltar à condição fisiológica e a produção periférica de melatonina é mantida. Ou então a produção pela pineal não é recuperada e o organismo, que aparentemente está bem, fica mais propenso ao surgimento de doenças. “Foi com esse raciocínio que resolvemos investigar a relação entre melatonina e câncer”, disse.
O estudo começou com a observação de amostras de gliomas – um tipo de câncer que afeta o sistema nervoso central – obtidos de pacientes envolvidos em um estudo coordenado por , da Faculdade de Medicina da USP.
“Decidimos avaliar, nas células tumorais, como estava a expressão das duas enzimas-chave para a síntese de melatonina: a ASMT e a AANAT. Chamou a nossa atenção o fato de a expressão de ASMT estar muito baixa, mas o número de amostras era pequeno e decidimos investigar em linhagens já estabelecidas de gliomas”, disse Markus.
O grupo então notou que, enquanto as linhagens mais agressivas (gliomas de grau 4) praticamente não tinham secreção local de melatonina, a expressão das enzimas de síntese era maior em gliomas de grau 1 e 2, considerados de menor malignidade.
O passo seguinte foi analisar dados de tumores depositados no banco público mantido pelo Cancer Genome Atlas (), nos Estados Unidos. Além de informações sobre expressão gênica no tecido tumoral, o repositório também oferece acesso a dados clínicos, permitindo aos pesquisadores fazer correlações entre os achados sobre a expressão da melatonina e o desfecho clínico de cada paciente.
“Investigamos a síntese de melatonina em praticamente todos os tipos de tumores depositados no banco. Para isso, criamos um índice com base na expressão do gene ASMT e também do gene CYP1B1, que codifica a principal enzima responsável por degradar a melatonina [se esse gene estiver muito expresso o hormônio será rapidamente metabolizado e o nível de melatonina será baixo na célula]”, disse Markus.
O estudo mostrou que, quanto maior era o índice (ou seja, maior era a produção preditiva local de melatonina), menos agressivo era o glioma e maior era o tempo de sobrevida dos pacientes. Resultados semelhantes foram observados para outros tipos de tumores sólidos como pulmão, pâncreas, colorretal e bexiga, mas não em tumores não sólidos como a leucemia e os linfomas.
Os resultados da investigação com dados de gliomas foram publicados em 2016 no e compõem a tese de doutorado de Kinker, que, atualmente, continua os estudos do sistema melatonérgico em gliomas no Weizmann Institute of Science, em Israel.
“Partimos então para investigar por quais mecanismos a melatonina estava agindo nas células do câncer e, atualmente, estamos em processo de patenteamento de métodos prognósticos e agentes melatonérgicos para o tratamento de alguns tumores sólidos”, disse Markus.
Segundo a pesquisadora, a melatonina em si não poderá ser usada no tratamento porque atua por múltiplos mecanismos de ação e pode não favorecer a contenção do tumor em alguns pacientes.
“É fundamental conhecer as possíveis variáveis do sistema antes de intervir, pois são diferentes em cada paciente. Acreditamos que o ideal seja uma terapia individual precedida por exame laboratorial mostrando que o tratamento não será prejudicial. Por esse motivo, estamos trabalhando no desenvolvimento de um kit para avaliar a produção de melatonina no tecido tumoral. Acreditamos que seja possível fazer um teste barato, semelhante ao usado para medir glicose no sangue”, disse a professora do IB-USP.
Os pesquisadores ressaltam, contudo, que antes de lançar a tecnologia para avaliação do prognóstico será preciso validá-la em amostras de biópsia dos diversos tipos de tumores sólidos estudados, processo que deve demorar cerca de três anos.
“Também precisamos estabelecer o melhor processo para fazer essa análise e uma forma de adaptar a metodologia para uso comercial. Agora é hora de pensar em como transformar conhecimento em produto, uma etapa que temos muito a aprender com o Instituto Weizmann de Israel”, disse Markus.