Peter Moon | Agência FAPESP – Pesquisadores brasileiros descobriram que um medicamento comumente prescrito para controlar o colesterol pode ser uma alternativa no tratamento da caquexia – síndrome caracterizada pela perda acelerada de massa corporal e de gordura associada a uma extrema debilitação física. Essa condição é comum entre portadores de doenças crônicas como câncer, insuficiência cardíaca e Aids.
O estudo, apoiado pela FAPESP, foi publicado na revista Scientific Reports, do grupo Nature.
“Queremos entender todo o processo de desenvolvimento da caquexia e explorar a atividade de fármacos que possam retardá-la”, disse Miguel Luiz Batista Junior, professor na Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) e líder do estudo.
Segundo Batista, pesquisas anteriores demonstraram que, em pacientes com caquexia, ocorre um processo de remodelamento do tecido adiposo conhecido como amorenamento (browning, em inglês), que contribui sobremaneira para a perda acelerada de peso e de gordura. Por meio de experimentos com camundongos, pesquisadores do Laboratório de Biologia do Tecido Adiposo da UMC identificaram uma proteína-chave para esse processo e demonstraram que a atorvastatina é capaz de atenuá-lo.
A pesquisa contou com a colaboração de cientistas das universidades Federal de Minas Gerais e Estadual de Maringá (PR) e das universidades de Massachusetts e de Boston, ambas nos Estados Unidos. Além da FAPESP, também financiaram o projeto o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o Instituto Serrapilheira.
Como explicou Batista, os dois tipos mais importantes de tecido adiposo são o branco, cuja função é acumular gordura quando existe excedente energético disponível, e o marrom, que atua principalmente na regulação térmica do organismo por meio da produção de calor.
Por esse motivo, no inverno, é importante consumir alimentos em maior quantidade ou com maior teor calórico, uma vez que as células adiposas marrons queimam gordura para dissipar calor e regular a temperatura corporal.
Mas as células adiposas marrons não são as únicas capazes de queimar gordura na regulação térmica do organismo. Quando o frio é muito intenso, pode entrar em ação também um terceiro tipo de célula adiposa: as células bege. Isso ocorre por meio do amorenamento de células do tecido adiposo branco.
Durante esse processo, as células alteram sua estrutura e função. Além de continuar armazenando excedente energético, passam, prioritariamente, a queimar a gordura de modo a auxiliar na regulação térmica do organismo.
“Em pacientes com caquexia ocorre a transformação das células adiposas brancas em células beges. Isso é curioso, pois, em tese, não é benéfico ao organismo de um indivíduo debilitado diminuir suas reservas de gordura”, disse Batista.
O papel fisiológico e as consequências do processo de amorenamento induzido pela caquexia não eram conhecidos. “É aí que reside uma das duas grandes contribuições do nosso trabalho”, disse Batista.
Receptor TLR4
O receptor TLR4 (do inglês toll-like receptor 4) é uma proteína que desempenha papel fundamental no reconhecimento de patógenos e na ativação da imunidade inata e da resposta inflamatória. Como a obesidade está associada a um quadro inflamatório sistêmico, assim como a caquexia, os autores da pesquisa desconfiaram que o TLR4 poderia desempenhar algum papel no remodelamento do tecido adiposo.
“O que fizemos foi tentar associar a ação do TLR4 à caquexia”, disse Batista. Um dos trabalhos envolveu um modelo com camundongos, no qual houve tanto a inibição farmacológica quanto a ablação genética de um receptor semelhante ao TLR4 humano.
Em seguida, foi induzido câncer de pulmão nos animais modificados geneticamente (sem TLR4) e também em um grupo controle com animais selvagens (com TLR4).
“Observamos que, 28 dias após a inoculação de células cancerígenas no pulmão, houve uma redução de 12% no peso corporal dos camundongos com TLR4 [selvagens], um sinal clássico de caquexia”, disse Batista.
Nos camundongos com a ablação genética do receptor, a caquexia foi menos grave. “Percebemos que esses animais perderam menos peso e menos massa muscular e tiveram maior sobrevida, apesar de não ter sido registrada diferença no crescimento do tumor quando comparado ao grupo controle. Cabe ainda salientar que nenhuma metástase pulmonar foi detectada entre os animais geneticamente modificados”, disse.
Ao examinarem as células adiposas, os pesquisadores observaram que nos camundongos do grupo controle (com TLR4) ocorreu o amorenamento do tecido, o que acelerou a perda de peso. Entretanto, nos animais que sofreram a ablação do receptor, foi observada uma redução nesse processo.
“Nos camundongos modificados, o tecido adiposo foi menos alterado. Ou seja, a ausência do receptor bloqueou significativamente o efeito de amorenamento do tecido adiposo”, disse o professor da UMC.
Atorvastatina
A atorvastatina é uma droga de baixo custo e de uso comum para o controle do colesterol. Nos últimos anos, foram descritos efeitos anti-inflamatórios da atorvastatina que incluem a regulação negativa da expressão do gene TLR4, que codifica a proteína de mesmo nome.
Os autores do estudo decidiram, em um modelo pré-clínico, verificar se a atorvastatina poderia ter, em camundongos normais (com TLR4), efeito sobre o desenvolvimento da caquexia similar ao obtido nos animais em que foi feita a ablação daquele receptor.
Foi induzido câncer de pulmão em dois grupos de animais, ambos formados por camundongos sem alteração genética. No grupo não tratado com atorvastatina, o tumor se desenvolveu e apareceram sintomas de caquexia.
Já no grupo de animais que receberam atorvastatina, o resultado foi ainda melhor do que o observado entre os animais geneticamente modificados com a ablação de TLR4.
“O tratamento com atorvastatina se mostrou efetivo em prolongar a sobrevida dos camundongos, atenuar o remodelamento do tecido adiposo e reduzir o crescimento da massa tumoral (em 49,7%) em comparação a um grupo controle não tratado com a droga. A atorvastatina mostrou ter um efeito direto sobre a ação do receptor, o que inibiu o amorenamento do tecido adiposo e reduziu o crescimento da massa tumoral”, disse Batista.
“No que tange às perspectivas de tratamento da caquexia, os resultados dos modelos genético e pré-clínico são muito promissores. Esperamos que tais resultados incentivem pesquisadores a testar o uso clínico de atorvastatina em portadores de câncer”, disse.
Na grande maioria dos casos, a caquexia está associada aos últimos estágios do desenvolvimento de diversas doenças crônicas graves. Em 20% desses pacientes terminais, a caquexia está ligada diretamente à evolução para o óbito. Entre pacientes com câncer de pâncreas, de pulmão ou tumores gastrointestinais, a caquexia aparece em 60% a 80% dos casos.
“Quando a caquexia se estabelece, ela não é reversível. Em pacientes oncológicos, o desenvolvimento da caquexia geralmente indica que o caso se aproxima do final. Em decorrência da extrema debilitação física do paciente caquético, a equipe médica é quase sempre obrigada a reduzir a medicação ou mesmo suspender a radioterapia ou a quimioterapia”, disse Batista.
“A prioridade dos oncologistas não é tratar a caquexia, mas atacar o tumor. Porém, conhecer os motivos que levam ao desenvolvimento dessa grave síndrome metabólica pode levar à descoberta de drogas que, ao atenuar os efeitos da caquexia, permitam que ela não interfira tanto na continuidade do tratamento oncológico”, disse.
O artigo Toll-Like Receptor-4 Disruption Suppresses Adipose Tissue Remodeling and Increases Survival in Cancer Cachexia Syndrome (doi: 10.1038/s41598-018-36626-3), de Felipe Henriques, Magno A. Lopes, Felipe O. Franco, Pamela Knobl, Kaltinaitis B. Santos, Luana L. Bueno, Victor A. Correa, Alexander H. Bedard, Adilson Guilherme, Alexander Birbrair, Sidney B. Peres, Stephen R. Farmer e Miguel L. Batista Jr., pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41598-018-36626-3.